sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Batalha de Canas (216 a.c.)




Nesse vídeo, vou falar sobre a Batalha de Canas, ou Cannae em inglês. Essa foi uma batalha vital da Segunda Guerra Púnica entre Roma e Cartago, com vitória dos cartaginenses liderados por Aníbal. A fonte de informação é o livro Cannae, 216 BC de Mark Healy publicado pela Osprey.

O casus belli da Segunda Guerra Púnica foi a tomada da cidade espanhola de Sagunto, porém, a rivalidade entre Roma e Cartago já vinha se acirrando desde o final da Primeira Guerra Púnica e era questão de tempo até que um novo conflito eclodisse.

Antes de entrar no assunto da Segunda Guerra Púnica, vou resumir a Primeira Guerra. Primeiro de tudo, Cartago foi fundada por fenícios e por isso o nome do conflito, os fenícios sendo chamados de púnicos em latim. Roma e Cartago disputavam o comércio no Mediterrâneo, o que resultaria em uma longa guerra entre os dois, vencida por Roma em 241 antes de Cristo. Como ocorreria com a Segunda Guerra Mundial, a Segunda Guerra Púnica seria resultado direto da primeira e dos ressentimentos que foram criados durante o conflito por conta das humilhantes exigências impostas pelos romanos. Os cartaginenses foram obrigados a sair da Sicília e pagar uma enorme indenização de 3300 talentos de ouro.

Em 237 antes de Cristo, os romanos tomaram a Sardenha de Cartago, violando o acordo de paz. Cartago se prepararia para retomar a cidade, mas Roma enviaria um ultimato para que eles desistissem e exigiriam ainda mais indenização. Cartago então iria para a Península Ibérica para se expandir militarmente, primeiro sob o comando de Amílcar e depois de sua morte por seu genro, Asdrúbal, não confundir com o irmão de Aníbal. Em 226 antes de cristo, Roma interviria para proteger tribos amigas, estabelecendo que Cartago não poderia cruzar o rio Ebro. A situação da cidade de Sagunto, porém, não estava definida por esse acordo e a invasão da cidade por Cartago causaria uma nova guerra entre Roma e Cartago.

Após o assassinato de Asdrúbal em 221 antes de Cristo, Aníbal assumiria o comando das operações militares de Cartago e retomaria a expansão territorial. Em 219 antes de Cristo, seu alvo seria a cidade de Sagunto, apesar das declarações de Roma de que a cidade estava sob sua proteção. Aníbal perguntou ao Sufete, o senado cartaginense, se tinha a permissão para invadir Sagunto e eles lavaram as mãos, deixando que Aníbal fizesse o que bem entendesse. Aníbal invadiria Sagunto e Roma não interveria, revelando seu blefe. Porém, não deixariam por menos e enviariam um ultimato para Cartago, pedindo pela cabeça de Aníbal e a recusa significando guerra. O Sufete terminou por rejeitar o ultimato de Roma e a Segunda Guerra Púnica se iniciaria.

Aníbal não pretendia que essa fosse uma guerra defensiva, pois isso seria derrota certa. Seu ousado plano era atacar Roma diretamente, cruzando os Alpes e se dirigindo à capital. Sabia que seu exército era inferior, mas a vitória não deveria ser meramente militar, e sim política. Aníbal pretendia fragmentar a união política romana, enfraquecendo os laços com as diversas tribos que cediam homens para o exército romano. Seu alvo declarado era Roma e ele mostrava isso libertando prisioneiros de guerra de aliados de Roma, o que aumentaria as chances de seu plano ter sucesso.

Comandantes
Os cartaginenses eram liderados por Aníbal Barca, filho de um dos líderes cartaginenses da Primeira Guerra Púnica, Amílcar Barca. É dado como um líder carismático, que conseguiu manter unido um exército de mercenários em sua campanha em Roma. Esse não foi um feito pequeno, dada a grande heterogeneidade de nacionalidades e de motivações, Aníbal conseguindo entender o que os seus comandados queriam e usando isso a seu favor. Aníbal compartilhava das mesmas privações de seus soldados e acima de tudo era um grande líder militar que não punha em risco a vida de seus homens sem necessidade, o que gerava confiança entre seus comandados, que lutavam por ele, não por Cartago. Aníbal era um excelente estrategista, muito superior aos comandantes romanos com a exceção de Cipião Africano que o derrotaria na Batalha de Zama. Aníbal não conseguiria derrubar Roma, mas ficaria na história como um dos grandes comandantes militares com feitos que incluem a Batalha de Canas.

A organização militar de Roma colocava em comando cônsules eleitos pelo Senado, para evitar que os militares ganhassem poder. O resultado, porém, foi que o comando dos exércitos na frente de batalha era ineficiente. Isso acabou sendo contrabalanceado pela ótima disciplina e efetividade das tropas, mas as legiões ganhavam batalhas apesar da inadequação tática. Porém, ao se deparar com um gênio militar como Aníbal, essas fraquezas ficaram evidentes e pesaram contra Roma.

O único cônsul que estaria a altura de Aníbal era Fábio Máximo, chamado pejorativamente de Cunctator, aquele que adia, para depois ser chamado assim como um elogio. Após derrotas humilhantes como a da Batalha de Canas, Fábio Máximo seria escolhido ditador e utilizaria uma tática de atrasar o inimigo e espera-lo ao invés de adotar a prática mais comum dos romanos e partir para a ofensiva, o que se mostraria um acerto.

Exércitos Opostos
O exército cartaginense de Aníbal era composto por forças mercenárias africanas, espanholas e celtas. Não há muita informação precisa sobre os equipamentos utilizados pelas tropas de Aníbal ou sobre a organização das forças cartaginesas. Muitos dos soldados sequer vestiam algum equipamento de proteção, enquanto que outros vestiam cota de malha e elmos. As armas mais empregadas eram lanças para arremesso combinada com uma espada curta ou apenas uma espada mais longa. A cavalaria era o ponto mais forte do exército de Aníbal, os numídas formando um grupo que conduzia os cavalos sem rédea e que eram utilizados para provocar os romanos e atrai-los para o combate. Celtas e espanhóis formavam outro grupo de cavalaria e Aníbal, através de sua forte liderança, conseguiu fazer com que atuassem bem juntos.

Sobre Roma, não vou entrar em maiores detalhes, já que há muita coisa a se falar sobre legiões romanas. Basta dizer que não eram forças mercenárias, mas também não era um exército profissional no sentido moderno. Era composto por cidadãos com um critério rígido sócio-econômico na época. Era considerado um dever patriótico servir nas legiões e apenas aqueles com posses poderiam servir, já que são aqueles que teriam mais motivação para lutar, ou assim acreditavam. Depois, com as várias baixas provocadas por Aníbal, eles flexibilizariam os critérios, mas a princípio era assim.

Os soldados romanos lutavam basicamente com a lança pila, a espada curta gládio em uma mão e o escudo redondo na outra. A proteção variava muito de soldado para soldado, os mais pobres, os vélites, recebendo pouca ou nenhuma proteção corporal ao contrário dos outros tipos de soldados rasos mais ricos. A cavalaria não era muito bem desenvolvida no exército romano e eles pagariam um preço caro por conta disso. Além de cidadãos romanos, as legiões eram compostas por soldados de outras nacionalidades através de acordos com Roma.

Ticino e Trébia
Antes de entrar na Batalha de Canas, é necessário falar sobre algumas batalhas que ocorreram antes. Inclusive, Canas não está no Rome: Total War, mas esse jogo tem as batalhas de Trébia e Trasimeno, que eu mostro como gameplay nessa parte.

Públio Cornélio Cipião e Tibério Semprônio Longo estavam encarregados de parar Aníbal. Porém, Cipião teve que lidar com uma revolta de tribos célticas antes, o que acabou desviando a sua atenção por algum tempo. Em seguida, identificou a rota de Aníbal, que estava cruzando os Alpes para um ataque direto a Roma. Manteria o seu exército na Espanha para lutar com as forças de Asdrúbal Barca, irmão de Aníbal, e impedir que eles mandassem suprimentos e reforços para Aníbal.

Em novembro de 218 antes de Cristo, Aníbal terminaria a travessia dos Alpes e chegaria na Península Itálica, tendo perdido metade dos homens, segundo estimativas. Seria vital obter reforços das tribos célticas, que, no entanto, estavam céticas quanto à capacidade de Aníbal. Para contornar isso, os cartaginenses atacaram a cidade que hoje é Turim, a principal cidade dos taurinos. Isso elevaria o moral das tropas e angariaria apoio dos celtas, que viram os cartaginenses como seus salvadores.

Aníbal desejava uma vitória de maior escala. Essa vitória viria na Batalha de Ticino, onde Aníbal e Cipião se enfrentariam pela primeira vez. Foi mais um confronto de cavalarias do que uma batalha e aqui os cartaginenses mostrariam a sua superioridade na cavalaria, vencendo facilmente a batalha. Cipião seria ferido na batalha e salvo pela ação rápida de seu filho, que seria conhecido como Cipião Africano. Os romanos recuariam de Placência, se dirigindo ao sul para os Apeninos, onde esperariam reforços de Semprônio. Aníbal conseguiria angariar ainda mais apoio dos celtas, inclusive desertores das fileiras romanas.

A primeira grande batalha entre romanos e cartaginenses na Segunda Guerra Púnica seria a Batalha de Trébia. Aníbal e as legiões romanas de Semprônio se enfrentariam no rio Trébia, na região de Placência. Os dois exércitos estavam acampados próximos e era questão de tempo para que houvesse um conflito, mas seria Aníbal quem estabeleceria as condições do confronto.

Os romanos eram obcecados quanto à possibilidade de uma emboscada na floresta, mas Aníbal conseguiria armar uma armadilha de uma maneira que os romanos jamais desconfiariam, escondendo soldados na vegetação que havia nas margens do Trébia. Além disso, conhecendo o temperamento romano e sua predileção pelo ataque, provocaria os romanos com um ataque de cavalaria no acampamento romano no começo da manhã. A cavalaria cartaginesa seria perseguida logo após, sem mesmo dar tempo para que os romanos se alimentassem, tendo que lidar ainda com o frio e a neve. As tropas de Aníbal estariam mais bem preparadas para a batalha, tendo se alimentado antes e passando um óleo para proteger contra o frio.

Aníbal primeiro atacaria os flancos dos romanos usando a sua cavalaria, privando o centro da formação da proteção dos flancos. No centro, haveria um confronto entre infantarias, a situação dos romanos piorando com a chegada de mais infantaria, da cavalaria e das tropas que estavam escondidas na vegetação aparecendo para atacar a retaguarda romana.

No final da Batalha de Trébia, os romanos perderam entre 15 e 20 mil soldados, com baixas bem mais modestas entre os cartaginenses. A responsabilidade pela vexaminosa derrota tem que se atribuída a Semprônio, que partiu para o ataque contra Aníbal com a esperança de ser aquele que o derrotaria. Cipião o aconselhou a ser mais cauteloso e “deixar a situação permanecer como está”, e o comportamento inverso a esse lhe rendeu uma grande derrota.

Aníbal passaria o final do ano e o inverno no Vale de Pó junto a tribos célticas amigas que forneceram suprimentos para a temporada. Em 217 antes de Cristo, retomaria as operações com o objetivo de ir ao sul, onde poderia encontrar mais tribos célticas cujo apoio poderia obter, o que era essencial para o seu objetivo de desmantelar Roma

Sua rota foi cruzar o rio Arno de uma maneira que os romanos não estavam esperando. A rota escolhida era difícil e selecionada justamente por isso, com um caminho inundado pela neve, mas mesmo assim transponível. A região era protegida pelo exército capitaneado pelo cônsul Caio Flamínio, que não conseguiu interceptar Aníbal na sua rota em direção ao sul, para a região de Etrúria.

Mais uma vez, Aníbal queria atrair os romanos para uma batalha nas condições impostas por ele. Para isso, saqueou diversas cidades na região, que era bastante fértil e rica. Porém, o cônsul não faria esse movimento, nem mesmo quando temerariamente Aníbal se aproximou de seu acampamento para tentar induzi-lo ao ataque. Flamínio decidiria perseguir o exército de Aníbal, mas sem se engajar em combate, apenas acompanhando e esperando a chegada de um segundo exército consular liderado por Cneu Servílio Gêmino.

Aníbal sabia que estava sendo perseguido e procuraria estabelecer uma situação favorável a ele para golpear Flamínio. Na região do Lago Trasimeno, manobraria de forma a estabelecer acampamento em uma colina em Passignano enquanto Flamínio ficaria em uma planície ao oeste. Durante a noite, Aníbal prepararia uma armadilha para Flamínio aproveitando a luz da lua. A natureza continuaria ajudando Aníbal ao providenciar uma névoa que diminuiria a visibilidade e dificultaria a identificação da armadilha.

Tendo tantas vantagens, seria chocante se o resultado fosse outro que não um massacre cartaginense, que de fato ocorreria, tendo como saldo final 15 mil romanos mortos, incluindo Flamínio, e 10 mil capturados contra 1500 cartaginenses mortos. Os aliados de Roma capturados foram soltos e Aníbal declararia que a luta dele era contra Roma, não contra seus aliados. No dia seguinte, muitos dos soldados romanos que conseguiram fugir acabaram se rendendo.

Essa foi uma vitória absoluta sobre os romanos, que ficaram com poucos homens capazes de lutar para enfrentar Aníbal. Essa seria uma boa oportunidade para atacar a capital, mas não foi o que Aníbal fez. Essa nunca foi a estratégia dele, que sempre pensou em destruir a confederação desestabilizando Roma e fazendo com que perdesse o apoio de seus aliados.

Notícias sobre esse desastre chegaram a Roma e causou pânico geral, espalhando a expressão “Aníbal nos portões”. O Senado precisava agir e eleger um líder, mas com Flamínio morto e Gêmino incapaz de retornar a Roma devido ao bloqueio imposto por Aníbal, as opções não eram muitas. No fim, Fábio Máximo seria eleito Ditador, mas o Senado restringiria alguns de seus poderes, como escolher o segundo em comando, pois ainda acreditavam que a situação não estava tão crítica assim e que Aníbal ainda podia ser derrotado.

Novas legiões precisaram ser criadas emergencialmente, com homens ou mais velhos ou muito jovens. Alguns ficariam para proteger Roma e outros seguiriam atrás de Aníbal. Sob comando de Fábio Máximo, os romanos mudariam de estratégia, não iniciando combates contra Aníbal e permanecendo em terreno vantajoso para evitar o ataque cartaginense. Fábio Máximo enviaria alguns ataques isolados contra Aníbal, para diminuir gradualmente as forças inimigas e para recobrar a confiança de seus soldados. Aníbal provocaria Fábio Máximo, saqueando e destruindo vilas pelo seu caminho, mas Máximo manteria a sua estratégia apesar das provocações e das pressões internas para agir

Isso não estava nos planos de Aníbal, que precisava recuperar suprimentos para continuar a campanha. Porém, sua saída estava bloqueada por forças de Máximo. Foi então que Aníbal executaria um subterfúgio genial. À noite, colocaria madeira no chifre do gado que obteve, tacou fogo e os mandou para a passagem. As tropas que protegiam a região pensavam que o inimigo estava avançando e atacaram o falso exército, permitindo que Aníbal passasse e obtivesse a fuga que desejava.

Fábio Máximo não reagiria a esse movimento e aqui ganharia o apelido de cunctator, aquele que adia. Aníbal tomaria a cidade de Gerônio e sairia em busca de suprimentos. Enfrentaria forças do segundo em comando, Minúcio, e sofreria um revés que elevaria o moral romano. Haveria uma disputa de poder entre Fábio e Minúcio que terminou na divisão do exército em dois. Minúcio decidiria atacar Aníbal e sofreria uma derrota, apena sendo salvo pela intervenção de Fábio, que recuperaria o comando total do exército.

Após isso, os dois lados se recolheriam ao acampamento de inverno, que Aníbal só conseguiu montar após reabastecer os seus suprimentos. Em 216 antes de Cristo, acabaria o mandato de Fábio Máximo e o senado, descontente com a estratégia defensiva e iludido com a vitória de Minúcio, decidiria por uma estratégia ofensiva. Caio Terêncio Varrão foi eleito cônsul e seria responsável por essa mudança. Para ajudar nessa nova estratégia, Roma utilizaria nada mais, nada menos do que oito legiões em um passo sem precedentes. Provavelmente os padrões de recrutamento já tinham sido diminuídos nessa época para arregimentar tantos soldados, embora as fontes só afirmem isso após a Batalha de Canas. Mas a pergunta é: isso seria suficiente para derrubar Aníbal em uma guerra ofensiva?

Aníbal só sairia de seu acampamento de inverno em junho de 216 antes de Cristo, para buscar suprimentos, aproveitando a colheita de trigo. O alvo era a cidade de Canas, utilizada como depósito de comida pelos romanos. E era inevitável que esse ataque provocasse uma resposta em Roma, que via nesse momento a ocasião certa para atacar Aníbal. Fábio Máximo era contra a ideia e alertaria Varrão sobre os perigos desse ataque, mas a decisão do Senado era de iniciar um combate com Aníbal.

Os romanos reuniram exércitos liderados Gêmino e Marco Atílio Régulo com os exércitos consulares de Varrão e de Lúcio Emílio Paulo. Quantitativamente era uma força impressionante se dirigindo a Canas para enfrentar Aníbal. Em 29 de julho, os romanos acampariam a cinco milhas do inimigo, de onde podiam ver os cartaginenses. Aníbal tinha uma cavalaria superior em números e em qualidade e o plano romano era atrair a cavalaria cartaginesa para um terreno onde podia ser neutralizada e vencer usando a infantaria superior. Os romanos bloquearam o acesso à planície onde Aníbal poderia obter suprimentos, o que seria uma pressão para que ele agisse primeiro.

No dia 2 de agosto, os romanos deixaram o seu acampamento e foram para o campo de batalha escolhido por eles, próximo do rio Aufídio e das colinas ao sul de Canas. Os romanos posicionaram a cavalaria em ambos os flancos para se protegerem de um ataque da cavalaria cartaginense, o flanco esquerdo próximo do rio e o direito de colinas, para oferecerem um terreno difícil para a cavalaria inimiga. A intenção romana era segurar a cavalaria cartaginesa enquanto que a muito mais numerosa infantaria romana atacaria pelo centro. Os comandantes romanos estavam confiantes, já que pela primeira vez eles tinham escolhido as condições nas quais a batalha seria travada.

Quanto a Aníbal, ele iria para o campo de batalha sabendo de sua inferioridade numérica. Seu plano era preservar as tropas espanholas e africanas e colocar as tropas célticas mais à frente. A maior parte da infantaria era composta por celtas, o exército sendo composto ainda por infantaria pesada, além de cavalaria numída e celta. Os cartaginenses estavam em menor número, mas isso não abalaria a confiança de Aníbal nem da maioria de seus homens. Aníbal iria para o campo de batalha não apenas conhecendo as suas próprias forças, mas tendo uma boa ideia das forças inimigas

Aníbal posicionaria a cavalaria pesada celta e espanhola no flanco esquerdo para encarar as forças de Paulo sob o comando de Asdrúbal, que não é seu irmão (parece que era um nome popular entre os cartagineses!). A cavalaria leve numída ficou no lado direito sob o comando de Maharbal. No centro da linha, infantaria celta e espanhola dispostas em um formato de crescente convexa, ou um C deitado, para ajudar a visualizar. Isso foi feito para desacelerar o avanço da infantaria romana pelo centro e dar tempo para que a cavalaria vencesse a resistência e flanqueasse o centro da formação romana. Além do mais, Aníbal guardou o seu trunfo, a infantaria pesada africana, para enfrentar os romanos quando as condições fossem mais favoráveis. O próprio Aníbal comandaria o centro do seu exército.

A batalha começou com as infantarias se enfrentando, começando com o arremesso de lanças e pedras e seguido pelo combate corporal. A batalha no flanco esquerdo foi especialmente feroz, os dois lados sabendo da importância dessa parte da formação. Incapazes de flanquear a cavalaria romana por conta do rio, os homens de Asdrúbal precisaram encarar de frente os romanos, que acabaram sendo prejudicados pela opção de comprimir a cavalaria em um curto espaço de campo, de forma que com o tempo se tornou quase um combate de infantarias. A cavalaria romana no lado esquerdo teve que recuar diante da mais numerosa cavalaria cartaginesa.

Paulo foi ferido no comando da cavalaria e cairia de seu cavalo ou teria desmontado. De todo modo, isso foi encarado como um sinal para o restante da cavalaria fazer o mesmo, o que os tornou presas fáceis para os cartagineses. A cavalaria romana ainda tentou fugir da batalha cruzando o rio, mas seriam exterminados. Conforme a cavalaria romana se afastasse da infantaria, surgiria um buraco na proteção do flanco, que Asdrúbal rapidamente aproveitaria com tropas frescas e exploraria essa brecha para atacar a infantaria pelo flanco.

No centro do campo de batalha, a infantaria romana avançaria com ferocidade aproveitando a sua superioridade numérica, mas seria atrasada pela formação de crescente convexo dos cartagineses, que obrigou os romanos a cobrir mais território para empurrar os cartagineses, cansando-os mais. Outra dificuldade é que os celtas preferiam usar a espada para cortar enquanto que os espanhóis para perfurar, o que deixava os romanos tendo que se adaptar a dois estilos de luta diferentes.

Inevitavelmente, a linha cartaginesa se quebraria e seria empurrada para trás pela muito mais numerosa infantaria romana. A linha cartaginesa assumiria uma forma côncava conforme ia sendo pressionada pelos romanos. Porém, ainda havia o trunfo dos cartagineses, a infantaria pesada africana posicionada nos flancos. A infantaria pesada, vestida com lóricas segmentadas obtidas dos espólios da Batalha do Lago Trasimeno, abaixaria as lanças e investiriam contra os romanos. O impacto de um ataque duplo da infantaria pesada seria devastador, e enquanto os romanos se voltaram para enfrentar a nova ameaça Aníbal reuniria a infantaria leve para avançar contra os romanos que há pouco tempo atrás estavam massacrando-os.

A cavalaria romana no flanco esquerdo (direito dos cartagineses) liderada por Varrão havia segurado os ataques da cavalaria numída de Maharbal. Mas isso duraria apenas até a cavalaria de Asdrúbal atacar a retaguarda da cavalaria de Varrão, o que desmontaria a disciplina romana e provocaria uma fuga do campo de batalha. Maharbal ficaria responsável por perseguir os romanos, enquanto que Asdrúbal atacaria a retaguarda do centro do exército romano, completando o cercamento cartaginense.

Atacados por todos os lados, os numericamente superiores romanos, possivelmente até essa parte da batalha, nada podiam fazer contra os cartaginenses. A batalha terminou com um massacre e uma vitória incontestável de Aníbal e suas tropas. A estimativa é de 47 mil mortos na infantaria, 2,7 mil na cavalaria e mais de 19 mil prisioneiros, contra uma baixa de 8 mil cartaginenses. Entre os mortos, Paulo, Gêmino e Minúcio.

Aníbal obteve a sua maior vitória e Roma a sua pior derrota em toda a sua história. Roma teria que se mobilizar para se proteger, criando novas legiões utilizando escravos, prisioneiros e sobreviventes da Batalha de Canas. Nessa época que surgiria o dito “Hannibal ad portas”, ou “Aníbal nos portões”, os romanos temendo uma invasão cartaginesa à capital a qualquer momento.

O que não aconteceu. E a pergunta é: por que Aníbal não atacou Roma? Maharbal pediria permissão para atacar a capital, negada por Aníbal. Ele diria ao comandante que era brilhante em vencer, mas não em explorar as suas vitórias. Porém, Aníbal sabia do potencial militar de Roma e sabia que um cerco seria demorado e desgastante. Se Sagunto resistiu oito meses, quanto tempo não resistiria Roma? E a estratégia de Aníbal era de uma guerra de mobilidade, não de cerco. O que ele precisava era de mais batalhas como Canas para que as deserções dos aliados começassem em maior volume, o que começou apenas modestamente após Canas. Porém, Roma não daria oportunidades para novas Canas para Aníbal.

No fim, a batalha daria validade para a estratégia de Fábio Máximo, a única que até o momento teve algum sucesso contra Aníbal e que voltaria a ser exercida após Canas. Paradoxalmente, o sucesso em Canas foi o ponto mais alto da campanha de Aníbal, mas também o fim de seu avanço, na medida em que os romanos não se engajariam em mais batalhas contra Aníbal. Tendo perdido o momento, Aníbal passou a sofrer com deserções e com a falta de reforços de Cartago, que preferiu reforçar a Espanha do que Aníbal. Canas seria a maior vitória de Aníbal, mas também o máximo que chegaria de derrotar Roma.

A Segunda Guerra Púnica só terminaria em 201 antes de Cristo, quinze anos após Canas. Como acabou e o que ocorreu entre Canas e 201 a.c., talvez eu fale em um vídeo futuro especificamente sobre a Segunda Guerra Púnica.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Manual do Ditador (#12) - O que fazer?




No capítulo nove do livro O Manual do Ditador, os autores terminaram a análise sobre a política em autocracias e democracias. O último capítulo do livro pergunta: o que há a ser feito  a partir disso?

E aqui temos que ser realistas. Os autores foram ao longo do livro realistas e até um tanto cínicos, mas assim é que é a política. Nesse capítulo, procuram analisar como as coisas poderiam ser na política, mas mantendo um pé no chão.

Pelo que vimos ao longo da série, os apoiadores essenciais preferem uma coalizão vencedora pequena para dividir em menos gente as recompensas privadas que obtém. Porém, países governados por autocracias tendem a ser mais pobres. Conforme a coalizão vencedora se expande, os líderes precisariam investir mais em bens públicos para aumentar o bem-estar da população e a produtividade do país pode crescer com um governo mais democrático, fatores que também beneficiariam as pessoas que fazem parte da coalizão.

O segredo para a democratização é a coalizão vencedora se expandir. Quanto maior o grupo de apoiadores se torna, mais os essenciais passam a considerar como positivos os benefícios de continuar a expandir a coalizão. Mais importante de tudo, eliminar apoiadores essenciais passa a exigir cada vez mais mortes para que se chegue ao número ideal na mente dos líderes e dos essenciais. Se isso ocorrer e a pessoa sobreviver, ótimo. Mas os essenciais sabem que quando a coalizão cresce, a chance do seu nome estar na lista do expurgo é grande, então eles não estão tão dispostos a apoiar uma eliminação de apoiadores.

Dessa forma, precisamos analisar as aspirações da coalizão vencedora, pois eles são a fonte de mudanças positivas ou negativas. Os essenciais podem reagir a uma revolução e a controlá-la ou participar dela, e vão decidir qual é o caso com base no que é melhor para eles. A boa notícia é que aumentar a coalizão é menos arriscado para os apoiadores essenciais, já que perder privilégios é ruim, mas perder a cabeça com a redução da coalizão é ainda pior.

O melhor momento para uma democratização é quando o líder ou é muito novo ou já está em um estado de saúde tão ruim que não demorará a haver uma mudança de poder. Não só por causa da transição, mas também porque o risco de ser expurgado é maior durante trocas de regimes.

Crises econômicas também são momentos propícios para mudanças. O dinheiro para pagar os essenciais é menor, o que no limite força o líder a conceder liberdades econômicas para a população, mas também pode dar incentivos para um expurgo, para reduzir o número de pessoas cujo apoio deve ser comprado e assim aumentar o prêmio individual. Temendo isso, os apoiadores essenciais podem ser favoráveis a um aumento na coalizão vencedora, ruim para o bolso, mas bom para a saúde. Um apoiador em específico pode adotar a dianteira porque sabe que o momento é bom e que outros o farão se ele não fizer.

Dessa forma, chefes novos, morrendo ou falidos são uma ameaça para os essenciais. Nessas condições, massas e apoiadores essenciais podem se juntar para a realização de mudanças de regime. A Primavera Árabe é um exemplo disso, as massas tomando as ruas e alguns dos apoiadores, incluindo o exército, ponderando que era melhor deixar a mudança ocorrer do que se arriscar e se opor a ela.

Nesse ponto, os autores fazem uma pausa na análise política e passam para o mundo dos negócios e a governança. E começa analisando o caso do Green Bay Packers, um time da NFL, a liga de futebol americano, que está sediado em uma cidade com 100 mil habitantes e tendo 112 mil acionistas. É o único time da NFL sem fins lucrativos e que tem como donos a própria comunidade de Green Bay e redondezas. Há um limite no número de ações que uma pessoa pode ter, o que impede que alguém ganhe muito poder político, e o conselho de administração tem 43 membros. Ou seja, o time tem tanto um grande número de intercambiáveis quanto uma coalizão vencedora grande.

Para empresas, o que os autores sugerem é justamente dar mais poder aos acionistas minoritários. As redes sociais estão participando ativamente das revoltas e protestos mundo afora e os autores sugerem que esse é o caminho. Nos Estados Unidos, a base acionária das empresas é mais dispersa, com milhões de acionistas com pouco poder político isoladamente. Esses pequenos acionistas possuem menos acesso a informações e na verdade não parecem se importar muito em exercer os seus direitos políticos.

A solução para esse problema é a área de relações com investidores, que busca a comunicação entre os investidores e a empresa. Há muitas iniciativas boas em Relações com Investidores no Brasil e no exterior, mas isso não parece ser suficiente para engajar mais os investidores. Uma coisa que não se vê é algum tipo de fórum de discussões ou um blog para que os acionistas pessoa física de uma empresa se comuniquem e possam se mobilizar.

Está certo que líderes empresariais fazem de tudo para dificultar a ação dos minoritários, mas, diferente dos líderes políticos, não dispõem de poder de polícia para reprimir os seus intercambiáveis. Iniciativas que fizessem com que os minoritários se mobilizassem podem ter o mesmo efeito renovador que manifestações por liberdades políticas poderiam obter, de forma a tornar os líderes mais responsáveis com seus principais, com as pessoas que eles representam.

Voltando ao mundo político, os autores analisam a história dos Estados Unidos e como melhorar as democracias. Eles questionam as análises de que o norte era mais próspero por causa do clima ou da escravidão. Um estudante deles realizou o cálculo do tamanho da coalizão vencedora estado a estado e determinou que no norte o número de apoiadores essenciais em relação à população era maior.

Os autores ainda retomam a discussão sobre o desenho dos distritos, um tema bastante polêmico nos Estados Unidos e que permite reduzir o número necessário para ser eleito nos Estados Unidos. Sugerem acabar com o gerrymandering e também o colégio eleitoral e a eleição indireta. Sugerem também flexibilizar as regras de imigração, que na verdade é historicamente um dos motivos para que os Estados Unidos tenham se desenvolvido. Além do mais, pode servir para aumentar a coalizão vencedora e forçar os líderes a se preocupar mais com o bem-estar da sociedade.

Para ditaduras, mudanças podem ocorrer por dentro ou por fora. A maneira mais eficiente e com mais chance de sucesso é que isso ocorra por dentro. E o ambiente mais propício para a queda de um regime é uma crise econômica quando o líder depende do dinheiro dos impostos para se manter no poder. Países turísticos são especialmente vulneráveis a mudanças, especialmente em tempos recentes. Para atrair turistas e ganhar dinheiro, o líder precisa conceder infraestrutura e liberdades, inclusive a de reunião e comunicação. Essas liberdades acabam se voltando contra o governo, como vimos na Tunísia e no Egito, dois países que dependem do turismo.

As democracias que genuinamente desejem democratização podem influenciar esse processo impondo condições para a ajuda externa, como a de fornecer infraestrutura de comunicações. Isso pode ser bom para o líder, na medida em que aumenta a produtividade da economia. Beneficia a população também, as comunicações melhorando a vida econômica das pessoas e dando as condições para uma revolta. Se o líder se recusar a aceitar a tecnologia, vai estar sinalizando para os doadores de ajuda externa que não é um líder político confiável. Outras condições podem ser impostas, como metas a serem cumpridas pelo país beneficiário, inclusive em termos de liberdades políticas.

Para ditaduras que podem se manter com recursos naturais, a questão é mais complicada, já que esses países não precisam fornecer muitos bens públicos para arrecadarem os recursos necessários para o líder se manter no poder. O jeito é esperar que a revolta política surja de dentro do país e oferecer anistia ao líder. Isso pode parecer estranho e até injusto, mas anistiar o líder de uma ditadura pode ser efetivo para tirá-lo do poder sem maiores derramamentos de sangue. E mesmo a mera proposta pode ser efetiva, já que os apoiadores essenciais vão desconfiar que o líder pode escapar a qualquer momento e retirar o apoio a ele. Porém, isso depende de ocorrer uma situação em que essa barganha possa ser mais efetiva.

Eleições, por si só, não são a solução. Mesmo que não haja manipulação de votos, mesmo que as pessoas possam votar livremente, de nada adianta se o partido no poder puder manipular o processo eleitoral para reduzir as chances da oposição ou até mesmo eliminar opositores fortes. Eleições nesse caso só aumentam a base de intercambiáveis (que é bom para o líder ao deixar desconfortável os seus apoiadores próximos) e servem para dar legitimidade ao líder aos olhos da comunidade internacional e entrincheira-lo ainda mais.

Bom, esse é o fim do livro O Manual do Ditador. O livro mostra alguns conceitos importantes sobre política e explica como líderes se comportam em democracias e autocracias dependendo de quantas pessoas ele precisa satisfazer para se manter no poder. A série terá mais um capítulo para eu mostrar o final dessa missão do Tropico 5, só não sei ainda sobre o que exatamente vou falar nesse próximo vídeo.

domingo, 2 de novembro de 2014

Manual do Ditador (#11) - Guerra e Paz




Guerra é uma constante da história humana. Muitas vezes, a guerra pode ser fruto de algum erro de cálculo ou mal entendido, mas também pode ocorrer de ser iniciada por um cálculo político de sobrevivência política seguindo as regras descritas no livro.

Isso não deveria ser surpreendente. Afinal, como disse Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios. Então, precisamos sempre procurar verificar os motivos políticos que levam a uma guerra e, assim como ocorre em outros aspectos, autocracias e democracias diferem muito. Líderes democratas pensam em bens públicos para satisfazer a grande coalizão, enquanto que líderes autocratas pensam mais nas recompensas privadas que podem extrair da guerra. Líderes democratas preferem comprometer o exército nacional para guerras que sabem que podem ganhar para conflitos de interesse nacional. Autocratas podem se comprometer a guerras de mais difícil resolução, podem fazer um bom esforço inicial, mas logo depois pedem para sair se as perspectivas parecem ruins.

A Guerra dos Seis Dias é um exemplo desse comportamento díspar. Israel entrou nesse conflito contra Egito, Síria e Jordânia com objetivos claros e sabendo que poderia vencer. Os gastos militares de Israel eram menores em termos absolutos na comparação com seus inimigos, mas em termos relativos o gasto por soldado era maior. E era mais bem empregado em equipamentos e treinamento que minimizavam o risco de baixas. Sendo uma democracia, Israel se preocupa com as baixas de soldados, que também são eleitores e cuja morte é vista como negativa pelos outros eleitores. Para os inimigos, que eram e ainda são autocracias, soldados não são apoiadores essenciais e podem morrer.

Como o próprio nome diz, a guerra foi curta. Israel conseguiu seus objetivos e os inimigos não tinham porque continuar na luta, já que o objetivo de mais longo prazo, o líder e seus compadres se manterem no poder, não dependia do resultado da guerra. Autocracias precisam muito de seus exércitos, porém, menos para enfrentar um inimigo externo e mais para se defenderem de insurgentes domésticos. Muito dinheiro vai para o exército, mas mais para pagar os apoiadores essenciais do que armar o exército. Entre ganhar guerras e receber recompensas privadas, os militares em autocracias optam pela segunda alternativa. Autocratas precisam de um exército poderosos suficiente para suprimir a sua própria população, não precisam de muito mais do que isso.

Democracias, por outro lado, utilizam seus exércitos para defesa ou para guerras ofensivas para defender interesses nacionais empreendidas quando eles têm certeza da vitória. Guerras longas e difíceis são extremamente impopulares em democracias e os líderes querem evitar isso. Por esse motivo, a Guerra Fria ficou fria, porque os Estados Unidos não tinham certeza da vitória.

A Primeira Guerra Mundial mostra alguns exemplos interesses. Primeiro de tudo, que lutar uma guerra para vencer pode prejudicar a sobrevivência do líder, como ocorreu com a Rússia, o governo caindo e o poder sendo tomado pelos sovietes, que sabiam que a guerra desviava recursos necessários para manter a coalizão vencedora leal e decidiram sair da guerra, que já estava cara demais.

Continuando com a Rússia, o país foi o que menos gastou em termos per capita. O mais interessante é que a Grã-Bretanha e a França gastaram mais do que qualquer outro país e aumentaram os gastos durante a guerra, ao contrário das autocracias exceto Alemanha. Mesmo assim, o aumento das democracias foi constante, enquanto que a Alemanha estacionaria os gastos por um tempo, só aumentando em 1917. Democracias têm mais compromisso com a vitória do que autocracias.

Outros casos são os Estados Unidos vencendo o México na guerra entre os dois entre 1846 e 1848, sendo que na época os Estados Unidos tinham um exército menos poderoso. Temos ainda Veneza sobrevivendo a conflitos com França até serem derrotados por Napoleão e a Prússia vencendo a Áustria em 1866 e a França em 1871.

Guerras são lutadas por sobrevivência política em democracias e autocracias, mas isso é feito de maneiras diferentes. Autocratas geralmente querem guerras rápidas que eles podem extrair benefícios para remunerar a coalizão vencedora. Democracias empreendem guerras para realizar objetivos de política externa. Podemos entender que guerras conseguem o que ajuda externa e diplomacia não são capazes de realizar. Democracias geralmente tiram o autocrata do poder e colocam um fantoche que eles possam manipular na direção de seus objetivos políticos. Esse fantoche pode ser um ditador mesmo, e é até mais confiável que seja, já que um democrata teria que se submeter aos desejos do povo, que podem não ser os mesmos do país invasor.

A Primeira Guerra do Golfo em 1991 é uma boa amostra disso. O Iraque invadiu o Kuwait esperando extrair benefícios disso, mas teria que enfrentar os Estados Unidos e aliados que expulsaram os iraquianos do Kuwait e se limitaram a isso. O objetivo era menos espoliar o Kuwait ou o Iraque e mais restaurar a ordem no Oriente Médio. Fizeram isso por seus próprios objetivos políticos e econômicos, mas mesmo assim sem a mesma sanha que Saddam tinha com relação ao Kuwait. Vendo que não conseguiria o que queria, Saddam Hussein não insistira com a guerra. Enquanto a coalizão liderada pelos Estados Unidos sofreu 358 baixas, o Iraque teria dezenas de milhares de baixas, que Saddam não lamentaria muito. Hussein poderia usar a sua guarda especial para lutar contra a coalizão, mas ele precisava de sua força de elite para se manter no poder. Mandaria, no lugar da sua guarda especial, soldados mal treinados e mal equipados. Isso foi importante, já que vários grupos tentariam se aproveitar da situação para tirar Saddam do poder, mas ele sobreviveria por mais uma década.

Em democracias, vencer guerras nem sempre significa sobrevivência política, que o digam Bush pai (Guerra do Golfo), Margaret Thatcher (Guerra das Malvinas) e até mesmo Winston Churchill. Para democracias, o que importa é o número de baixas, a opinião pública odiando corpos de soldados mortos em guerras. Se o país perde a guerra, como no caso do Vietnã, ai que o líder não tem como ficar, como ocorreu Lyndon Johnson. Por incrível que pareça, autocratas são menos vulneráveis a derrotas, exceto se a guerra era para derruba-lo. Por isso Saddam sobreviveu em 1991, mas não em 2003. Basta que o líder saiba lidar com eventuais rebeldes que tentem se aproveitar da derrota militar que ele se manterá no poder. Para isso, não pode desviar muitos recursos para a guerra exterior, resguardando a proteção doméstica. Além do mais, elevado número de baixas é irrelevante em autocracias.

Para enfatizar o valor que democracias dão a vidas de soldados (porque soldados mortos representam baixa de popularidade), os autores lembram o caso da Somália, onde helicópteros americanos caíram em território inimigo e os Estados Unidos fizeram de tudo para resgatar os soldados. Essa situação foi retrada no filme Falcão Negro em Perigo. Diametralmente oposto, na guerra entre Etiópia e Eritreia, quando tanques etíopes ficaram para trás, ao invés de serem resgatados, foram destruídos com um bombardeio.

Democracias nunca se enfrentam em guerra. Não porque democracias sejam amantes da paz, mas não houve uma situação em que uma democracia agressora encontrou uma democracia alvo tão mais fraca que a vitória era absolutamente certa. Tanto que muitas democracias já foram agressoras, como na época do Imperialismo, sempre contra autocracias bem mais fracas do que a democracia agressora.

Se democracias nunca se enfrentam, poderíamos imaginar que o caminho da paz é todo mundo se democratizar. Retoricamente, muitos presidentes americanos alegavam isso. Porém, na prática, precisamos lembrar que guerra é a continuação da política por outros meios. Quando ajuda externa e diplomacia falham, democracias podem usar a guerra para atingir seus objetivos. O século XX está repleto de casos, mas no século XIX tivemos a Guerra do Ópio entre China e Grã-Bretanha. E, mesmo assim, entrar em guerra para derrubar ditadores não costuma ser tão simples, como os recentes casos do Iraque e Afeganistão mostram, para não falar em Egito e Líbia. As próprias democracias podem não querer que uma nação se democratize, se isso significar ferir os interesses de outras nações, como o caso de Patrice Lumumba, democraticamente eleito no Congo e sofreria golpe de estado com ajuda da  Bélgica e Estados Unidos.

Democratização imposta externamente só funciona se o povo da ditadura derrotada compartilha de valores com a democracia vencedora e se a democratização for conveniente para os vitoriosos. Isso foi o que aconteceu com a Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial.

Resumindo, guerra é continuação da política por outros meios e gira em torno de sobrevivência política. Democracias recorrem a guerras para fins de política externa e autocracias para obterem recursos para recompensar os apoiadores essenciais.