segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Manual do Ditador (#10) - Povo em revolta




Um líder de sucesso sabe que precisa colocar as necessidades dos seus apoiadores essenciais acima das necessidades do povo. Esse é o básico da sobrevivência política, mas pode ocorrer da situação do país degringolar e o povo começar a ficar insatisfeito. Essa não é uma ameaça tão grande quanto uma revolta dos essenciais em termos de intensidade ou frequência, mas pode ocorrer e o líder precisa saber conter uma revolta popular.

Em autocracias, o povo enfrenta um grande dilema na hora de se revoltar. São eles que sustentam o líder e a sua coalizão vencedora, mas em autocracias o estado é muito mais forte do que o povo. Se o líder é sustentado por um governo estrangeiro benevolente ou recursos naturais, e não pelo povo, a situação fica pior.

Mas chega um momento em que o povo simplesmente não aguenta mais. Geralmente, há uma espécie de gota d'água, um momento marcante que faz com que as pessoas se decidam a arriscar as vidas para enfrentar o governo, seguindo alguns primeiros corajosos que tomaram a vanguarda e deram alguma esperança de vitória.

Há um delicado equilíbrio. Os líderes em autocracias basicamente fazem de tudo para amedrontar a população, convencendo as pessoas de que se opor ao governo significa morte, prisão ou miséria. A vida em um governo desses é horrível, mas o custo de enfrentar o governo é simplesmente muito grande.

Nas revoluções, quando um grupo se adianta para enfrentar o governo, os oposicionistas proclamam as suas intenções e prometem reformas democráticas, melhorias sociais, unificação nacional, ou seja, lá o que o povo aspira. Isso serve mais para chamar o povo para as ruas para apoiar os revolucionários, mas nunca é levado adiante quando, e se eles tomam o poder. Vide Rússia ou China indo para o comunismo, por exemplo. O povo se revolta contra o regime esperando melhorar a vida, mas podem simplesmente estar trocando uma autocracia por outra, talvez pior do que a anterior.

Mas, antes de tudo, vamos examinar como o incumbente reage a uma revolta popular. Há duas maneiras de proceder. Pode aumentar a democracia para melhorar a vida das pessoas ou aumentar a ditadura tornando pior ainda a situação e aumentando os riscos para insurgentes. Essa segunda estratégia é, obviamente, a mais efetiva. A lealdade do exército é chave nesse ponto. Por mais que as pessoas fiquem mais fortes juntas, o exército ainda contém mais força para reprimir a população. Muitos regimes caem porque o exército não protege o líder, e não o faz por não estar sendo bem recompensado ou por esperar ser melhor recompensado com um novo líder. Toda revolução bem sucedida contou com a deserção parcial ou total do exército na proteção do atual regime.

O importante para o líder é reprimir a revolta o quanto antes com a máxima força possível. Se deixar, o movimento pode crescer e ficar mais forte, se tornando mais difícil de debelar mesmo com a ajuda do exército.

Crises econômicas, como a que a França sofria antes da Revolução Francesa ou a da Rússia durante a Primeira Guerra Mundial, são a oportunidade perfeita para a tomada do poder, não só porque o povo está mais revoltado, mas porque o exército deve estar sendo mal pago. Mais recentemente, temos o Egito, onde o dinheiro começou a escassear, o exército começou a não receber a sua parte e o ditador de longa data acabou sendo derrubado por protestos populares. Assumiu um regime pior ainda que foi derrubado pelos militares, mas é assim que geralmente ocorre.

Protestos em democracias e autocracias são bem diferentes. Em democracias, protestar é fácil e barato, os cidadãos tendo liberdade de reunião, de expressão e de imprensa. Mas há também menos motivos para ir para protestar, embora possam fazer isso quando o líder adota uma política impopular, com guerra.

Em autocracias, por outro lado, há muito mais motivos para protestar, inclusive para derrubar o governo atual, mas poucos meios de se fazer isso, os cidadãos não tendo as liberdades necessárias para se manifestar. Isso acaba reduzindo a produtividade do povo, então o líder precisa saber equilibrar os bens públicos que ele vai tolerar a fim de ao mesmo tempo dinamizar a economia e mantê-lo no poder a salvo de protestos. Esses bens públicos incluem as liberdades citadas agora há pouco. Por isso que recursos naturais e ajuda externa são excelentes: o líder não precisa da ajuda do povo para se manter no poder.

Toda revolta popular começa com um evento (podemos chamar de choque) que dispara revoltas simultâneas em diversos lugares. Esse choque pode transbordar as fronteiras nacionais. Por exemplo, a queda de uma república soviética deu força para que as outras repúblicas se revoltassem e a União Soviética ruísse. A chamada Primavera Árabe de 2011 começou na Tunísia e foi se espalhando para outros países, como o já mencionado Egito.

Esses choques podem ser desastres naturais, crise sucessória, desaceleração econômica, além de algum evento social, como no caso da Tunísia, onde o suicídio de um comerciante disparou a chamada Revolução de Jasmin. Eleições podem ser uma fonte de choque mesmo em autocracias. Ditadores adoram eleições, desde que eles ganhem, e podem adotar diversas manobras para determinar o resultado da eleição. Porém, isso pode dar errado e dar início para uma revolução. Uma eleição pode dar força para a oposição que utiliza esse evento para ganhar corpo e momento. O começo do fim de Samuel Doe, da Libéria, foi a convocação de uma eleição, por exemplo.

Desastres naturais são curiosos, já que por um lado enfraquecem, empobrecem e matam as pessoas, mas formam campos de refugiados, que podem ser utilizados para organização política de uma forma que não seria possível de outro modo, ainda mais com o estado ocupado com outras coisas além de reprimir o povo. Foi o que ocorreu na Cidade do México em 1985 após um terremoto de 8,1 na escala Richter, gerando campos de refugiados que serviram para a mobilização política de milhares de pessoas descontentes e desiludidas pelo governo. Esse foi um fator para a democratização o México.

Dessa forma, desastres naturais são ruins para o governo, mas não pelos motivos certos. Mas a ameaça para a sobrevivência política pode ser contornada com as ações certas. Em Mianmar, o governo não cometeria o mesmo erro do México. O ciclone Nargis em 2008 causou um imenso estrago no país e mobilizou a comunidade internacional para auxiliar. O governo aceitou ajuda na forma de dinheiro, que não ia para ajudar os que precisavam, ou de bens, que chegavam a quem precisava depois de passar pelo mercado negro. Mas não deixa forasteiros entrarem no país. E quando os campos de refugiados se tornaram um foco de resistência política, o exército foi enviado para reprimir as manifestações. Cruel, mas do ponto de vista da sobrevivência política faz todo sentido.

Em democracias, desastres naturais são ruins para o líder, que pode perder o apoio do eleitorado se não souberem gerenciar bem a emergência. Após o furacão Katrina, por exemplo, o governo estadual e federal não foram competentes o suficiente para tomar uma ação para remediar o problema e os republicanos foram punidos nas urnas no estado. Não por outro motivo, morrem menos pessoas em democracias do que em ditaduras resultado de desastres naturais.

Seja pelo motivo que for, há sempre a ameaça de rebeliões em um país e o líder precisa escolher se vai reagir a isso com repressão (a forma mais eficiente, quase sempre eficaz, mas nem sempre possível) ou com diálogo (sempre uma opção perigosa). Mianmar é um caso emblemático. Esse é um país abençoado para o líder, cheio de recursos naturais como madeira, pedras preciosas e petróleo que facilitam governar sem a ajuda do povo, o que torna a população pobre e o líder e sua coalizão ricos. Como já mencionado, eles reprimiriam uma organização política que se formava nos campos de refugiados. Não era a primeira vez que reprimiriam fortemente a população. Em 8 de agosto de 1988, um grande protesto foi realizado e fortemente debelado pelos militares. Antes mesmo do ciclone Nargis, houve um grande protesto em 2007 com a participação de monges, que são reverenciados no país. Mesmo assim, as manifestações foram reprimidas e o General Than Shwe, que governava o país há 16 anos, se manteria no poder.

Por outro lado, alguns governos não conseguem evitar a revolução ou se democratizam por conta própria para evitar o golpe. Nesse segundo grupo, temos Gana, onde Jerry Rawlings, que governou o país em vários mandatos, decidiu abrir o regime em 1992 e se tornaria o primeiro presidente eleito do país e até ganharia a reeleição quatro anos depois. No primeiro caso, temos alguns poucos países que se democratizaram após a revolução, como os Estados Unidos e África do Sul, e outros que só trocaram uma ditadura por outra, como Cuba, Rússia, China, México, Quênia e por aí vai. No primeiro caso, desde o início havia uma coalizão grande para ser satisfeita, o que resultou na adoção de práticas democráticas. No segundo, ou não era esse o caso ou os revolucionários deram um jeito de restringir o número de apoiadores essenciais.

De forma geral, se o país é rico em recursos naturais, o caminho natural da revolução é uma ditadura, chegando à fonte de dinheiro do país, comprando o apoio dos essenciais e se mantendo no poder. Se o país não tem muitos recursos, precisa de uma economia produtiva, o que requer uma infraestrutura de comunicações e transporte que podem ser usadas contra o líder. Ou pode ocorrer do país estar em uma situação econômica ruim e se deteriorando, como a União Soviética da época de Gorbachev, que decidiu-se por liberalizar a economia para tentar salvar o regime arrecadando mais dinheiro. Porém, isso não significa que Gorbachev não agiria como um ditador, reprimindo movimentos separatistas em países como Lituânia, Letônia e Estônia.  Hoje em dia, a Rússia está trilhando o caminho de volta para a autocracia, sem precisar se preocupar tanto com dinheiro, já que possui bastante petróleo que está sendo melhor utilizado agora.

Há ainda um terceiro caso, onde o autocrata se compromete com a democratização, cumpre a sua palavra, mas, no meio do caminho, quando a crise que o levou a medidas tão drásticas passa, ele volta atrás e volta a fechar o regime. Esse foi o caso de Mugabe no Zimbábue e, apesar da longa janela de tempo, da própria Rússia.

Voltando a Gana, Jerry Rawlings não abriu o regime econômica e politicamente porque achava que essa era uma grande ideia e que faria seu povo feliz. O fez porque o governo estava sem dinheiro e que a melhor maneira de arrecadar dinheiro era melhorar a produtividade da economia, liberar o câmbio, seguir a cartilha do FMI e isso tudo envolvia conceder mais liberdades políticas e também, indiretamente, meios para que as pessoas se reunissem e se comunicassem. E acabou dando certo, tanto que ele foi eleito e reeleito presidente. Seja como for, Gana hoje é uma democracia e é relativamente próspera para padrões africanos.

Ou seja, crise econômica é uma crise política com especial ênfase nos países autocráticos. Vendo de fora, os países democráticos podem utilizar crises econômicas em autocracias como uma oportunidade para democratizar o país ou deixar que ele se democratize. O mais importante de tudo é o país estrangeiro não salvar o ditador, por exemplo, perdoando a dívida externa ou dando ajuda externa. Isso só serve para perpetuar o líder no poder. Se o líder adotar compromissos críveis de democratizar o país, essa pode ser uma alternativa, mas é necessário ter cuidado porque autocratas mentem bastante (assim como democratas). Em uma transição, é necessário ter extrema cautela, já que novos líderes costumam se travestir de democratas, mas apenas por tempo suficiente para formarem a coalizão vencedora e depois se mostrarem perfeitos autocratas.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Manual do Ditador (#9) - Ajuda Externa ao Líder




O sétimo capítulo do livro O Manual do Ditador discute a questão da ajuda externa, vendida ao público como uma prática com as melhores das intenções. A ideia é ajudar os países pobres a resolverem os seus problemas e melhorar a vida de suas populações. Porém, a verdade não é tão adocicada assim e tanto os líderes dos países que recebem quanto os que dão ajuda externa têm segundas intenções.

Na parte dos recebedores, os autores trazem o caso da Etiópia, relatando que em 1972, durante o reinado do Imperador Haile Selassie, os países que estavam dando ajuda externa se revoltaram contra a Etiópia. Isso porque o Ministro das Finanças do país estava pedindo dinheiro para que os estrangeiros pudessem dar ajuda. Como assim ajudar a população sem eles, a base de sustentação do regime, receber nada com isso?

Talvez com uma dose de cinismo, os governantes da Etiópia consideravam fome e seca como coisas normais. Há centenas de anos a população sofre com isso, então, para eles está tudo normal. Alguém poderia imaginar que essa postura era específica de Selassie e que as coisas mudariam com um novo governo. E mudariam, para pior. Mengistu Haile Mariam liderou o golpe militar que depôs Selassie e adotaria políticas que pioraram a situação da população. Com a guerra civil e a seca, Mariam adotou a coletivização de terras com o uso de trabalhos forçados. O resultado desse tipo de política é mais do que previsível: fome em massa, que vitimou entre 300 mil e 1 milhão de pessoas. Para Mariam, isso foi ótimo, já que enfraqueceu os rebeldes.

A parte superficial dessa história rodou o mundo e várias pessoas e organizações se mobilizaram para ajudar a Etiópia. Por exemplo, tivemos em 1985 o Live Aid, uma série de concertos realizados com o objetivo de arrecadar dinheiro para os famintos da Etiópia. Boas intenções, porém, é basicamente dar dinheiro para o vilão. Vários dos caminhões que deveriam ser utilizados para entregar a ajuda alimentícia foram ao invés disso utilizados para transportar compulsoriamente pessoas para as fazendas coletivas.

Esse não é um caso isolado. Os autores ainda citam outros exemplos, como o Paquistão, que recebeu 6,6 bilhões de dólares em ajuda dos Estados Unidos para combater o Taliban, mas estima-se que apenas 500 milhões acabaram sendo gastos para esse fim. Os Estados Unidos capturaram Bin Lande no Paquistão, mas sem muita ajuda e talvez até atrapalhados pelo exército local.

Alguém pode imaginar que, uma vez descoberto que os líderes estavam tendo essa atitude, a ajuda externa ia parar. Mas não é bem assim e vamos falar agora da parte doadora da ajuda externa. É necessário supor muita ingenuidade por parte dos líderes dos países desenvolvidos para que fosse plausível que eles não imaginem que a ajuda externa é mal utilizada. Por exemplo, no Quênia, John Githongo foi escolhido para dirigir um órgão anticorrupção. Não demorou muito para descobrir sinais de corrupção, inclusive na destinação da ajuda externa e então denunciar os líderes de seu país na comunidade internacional. Edward Gray, Alto Comissário britânico no Quênia, também denunciaria os líderes quenianos. Resultado: os dois foram afastados dos seus cargos e suas denúncias ignoradas.

Ajuda externa é acima de tudo uma política externa para defender os interesses dos países doadores. Nessa época, por exemplo, os Estados Unidos precisavam da ajuda do Quênia para combater os piratas somalis no Oceano Índico. O nosso velho amigo, Samuel Doe, por exemplo, recebia dinheiro dos Estados Unidos durante a Guerra Fria para que não se aliasse à União Soviética. Só quando acabasse a Guerra Fria é que os Estados Unidos se mostraram escandalizados com os usos da ajuda externa.

Dessa forma, a falha da ajuda externa em efetivamente melhorar a vida da população nos países recebedores não é questão de pouco dinheiro sendo utilizado para esse fim, e sim que o objetivo da ajuda externa nunca foi esse. Claro que nem todo o dinheiro da ajuda externa é desviado, algumas migalhas chegam ao povo, principalmente para ser possível tirar fotos e mostrar para a opinião pública internacional que o dinheiro está sendo bem usado. Porém, o fato é que a principal consequência é manter o líder no poder. Ajuda externa dá as condições para reduzir a pobreza, mas retira os incentivos para se fazer isso.

E por que os países ricos só pagam autocracias para realizar seus interesses em política externa? Primeiro, porque são mais pobres. Mas o principal é que esse tipo de compra de apoio funciona melhor em autocracias, onde a coalizão é pequena e o dinheiro da ajuda externa é dividido por menos pessoas. Por exemplo, os Estados Unidos queriam o apoio da Turquia para invadir o Iraque e ofereceram um caminhão de dinheiro. A Turquia, que é uma democracia, por mais imperfeita que seja, não aceitou. A população era contra, não só porque a maioria da opinião pública no mundo inteiro era contra, mas também porque eles não queriam ajudar um país cristão a invadir um país muçulmano. Como a coalizão vencedora é grande, a ajuda oferecida é baixa em termos per capita (estimada em 370 dólares), logo, os líderes da Turquia nunca iam aceitar essa oferta. Supondo que fosse necessário o apoio de 25% da população, ficaria mais ou menos 1500 dólares por pessoa, o que ainda é baixo. Ou seja, os Estados Unidos precisariam pagar muito mais dinheiro para comprar o apoio da Turquia, o que não era viável.

Ou seja, comprar o apoio de democracias é caro demais. Quando o país já está inclinado a adotar uma política, ajuda externa é só um empurrãozinho extra, mas quando a população é muito desfavorável, como no exemplo mencionado agora há pouco, aí fica difícil. Mais fácil comprar o apoio de uma autocracia, como o Paquistão.

Outro bom exemplo é o do Egito. Basicamente, os Estados Unidos compraram o apoio do Egito a Israel, sendo o primeiro país da região a reconhecer o Estado de Israel. A população egípcia não concordava muito com isso, mas a boleta dividida por pouca gente é o suficiente para que os líderes decidam por apoiar Israel. Isso acabou mal para o presidente Sadat, assassinado por fundamentalistas, mas faz sentido em termos de política.

Recentemente, movimentos democratizantes surgiram no Egito, incluindo a derrubada de um presidente de longa data. Mas isso não é bom para os Estados Unidos. Teoricamente, por tudo que eles falam em liberdade, deveria. Porém, fazer a vontade do povo aqui significa retirar o apoio a Israel. Para os Estados Unidos e Israel, é melhor uma autocracia amiga do que uma democracia com ideias próprias. Apesar do discurso de liberdade, os Estados Unidos nunca hesitaram em apoiar autocracias quando isso era conveniente.

Esses exemplos mostram como a ajuda externa ajuda o governo, e não o povo. Não a toa, em uma pesquisa realizada em 2002, Paquistão e Egito tinham majoritariamente uma visão negativa dos Estados Unidos. Ambos recebiam vastas quantias de ajuda externa, pelos motivos apontados acima. Seria possível imaginar que a ajuda externa deveria melhorar a opinião das pessoas, mas piora, porque as pessoas sabem que isso sustenta os governos autocráticos.

Não são apenas os Estados Unidos que pagam ajuda externa e os países não fazem isso apenas por motivos militares. Motivos econômicos também são fortes, como, por exemplo, obrigar o país recebedor a gastar o dinheiro em produtos do país doador. Ora, porque não dar dinheiro direto para as empresas nacionais. Resposta: leis comerciais internacionais impedem esse tipo de subsídio, e ajuda externa nesse formato ajuda a contornar essa restrição.

Uma análise interessante sobre o impacto da ajuda externa é verificar as consequências para eleição do conselho de segurança da ONU. Ser membro rotativo é algo muito buscado pelos países, mas os números mostram que o crescimento econômico dos membros rotativos diminui nessa condição. Mostram também que a ajuda externa aumenta, e dá para entender o motivo: passa a ser mais valioso comprar a amizade desse país. Também tende a diminuir as liberdades em autocracias, primeiro porque os líderes recebem dinheiro mais fácil, segundo porque podem adotar políticas impopulares, dependendo dos favores que vendem e precisando menos da cooperação da população.

Há ocasiões em que ajuda externa realmente ajuda. O Plano Marshall foi um exemplo. Apesar da ajuda aos países europeus por parte dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial ter motivos geopolíticos, ou seja, afastar os europeus da União Soviética, os recursos foram bem empregados e ajudaram os recebedores. O problema é que essa é uma exceção, fruto de uma situação extraordinária e tendo como receptores da ajuda países com mais inclinação para democracia.

ONGs podem prestar ajuda externa sem que isso envolva entregar dinheiro para os líderes políticos. Bom, sem entregar diretamente. ONGs não fazem nenhum trabalho em um país estrangeiro que o próprio governo não poderia pagar para fazer. Indiretamente, acabam entregando dinheiro para a coalizão do líder, com a ressalva de que é menos dinheiro.

Uma maneira que os países estrangeiros poderiam ajudar os países pobres é através do comércio internacional. Os países ricos adotam várias práticas protecionistas, a exemplo de qualquer outro país. Se liberalizassem mais o comércio com os países pobres, poderiam prestar um serviço melhor do que com ajuda externa.

Outro problema da ajuda externa é no caso de auxílio humanitário em caso de desastres naturais, como o tsunami de 2004 e o ciclone em Mianmar em 2008. Há o problema dos bens serem desviados e vendidos no mercado negro pelos apoiadores do regime, o que ocorre com frequência. No Sri Lanka, para liberar a entrada de ajuda externa após o tsunami, o governo exigiu o pagamento de imposto de importação de 300%, o que dá por volta de 1 milhão de dólares, que a Oxfam acabou pagando.

Ainda nesse tópico, desastres naturais, o Paquistão é outro exemplo. Após inundações na década de 1970, o governo investiu em programas de prevenção. Verdade irrefutável, porém, os investimentos foram concentrados em determinadas áreas a fim de beneficiar os membros da coalizão vencedora. Quem estava de fora, ou seja, o povão, ficou desprotegido, tanto que ocorreriam outros grandes desastres que prejudicavam a população. Essa é uma prática política interessante, lembrando aos apoiadores do líder as consequências de ficar de fora da coalizão vencedora. Melhor ainda: notícias de tragédias humanas atraem ajuda externa e mais dinheiro para os essenciais.

Como consertar a ajuda externa? Esperar que os líderes ajam de maneira mais humanitária é tolice. Uma sugestão é que os doadores ofereçam ajuda após a obtenção de objetivos. O Paquistão, por exemplo, poderia receber dinheiro apenas após capturar o Bin Laden e acabar com a Al-Qaeda, já que eles teriam um incentivo para agir assim. Bin Laden vivo e Al-Qaeda ativa eram fontes de receita para o Paquistão.

Outra solução seria as pessoas nos países ricos e democráticos realmente quererem ajudar os países pobres, com todas as consequências negativas que isso poderia ter para elas mesmas. Em democracias, os políticos tentam dar às pessoas o que elas querem, podendo ou apenas fingir que dão ou dar, mas de uma maneira distorcida. Se as pessoas realmente quisessem ajudar os países subdesenvolvidos, isso poderia ser feito de maneira mais efetiva. Mas a verdade é que as pessoas não querem isso tanto assim.

sábado, 11 de outubro de 2014

Manual do Ditador (#8) - Corrupção




No vídeo anterior, discutimos como os líderes gastam em bens públicos para se manterem no poder. Nesse vídeo, vamos discutir como eles podem gastar em bens privados. Em outras palavras, vamos falar de corrupção, que é outro meio efetivo de se manter no poder.

Gastar em bens privados para uma coalizão pequena é uma maneira mais barata de se manter no poder. Se além disso a base de intercambiáveis for grande, o custo de comprar a lealdade dos essenciais é ainda menor, já que os apoiadores saberão que podem ser substituídos por outra pessoa extraída da base de intercambiáveis.

Como já vimos em vídeos anteriores, os líderes querem chegar ao poder e se manter no topo. Para isso, podem recorrer a todo tipo de expedientes, incluindo suprimir a população com violência física, ou matar opositores, atuais ou potenciais, reais ou imaginários. É da política, o tamanho da coalizão vencedora determinando o que o líder pode ou não pode fazer.

Mas tem situações em que a violência não resolve as coisas. Ou então, que dinheiro resolve a situação de uma maneira muito mais satisfatória e fácil. Então, além da brutalidade, outro recurso que o líder pode recorrer para se manter no poder é a corrupção. Aliás, o próprio líder não precisa ele mesmo suprimir a sua população, pode pedir para um apoiador fazer isso. E o apoiador só o fará se receber algum por isso. E não será por vias legais, e sim ilegais, ou seja, corrupção, que em muitos casos não é feita nem tanto para enriquecer o próprio líder, muitas vezes sendo necessária para mantê-lo no poder. A regra de sobrevivência é clara: pense primeiro nos seus apoiadores essenciais antes de sua conta em Cayman.

Os países mais corruptos são aqueles que dependem de uma coalizão vencedora pequena, ou seja, autocracias com algumas semi-democracias como Venezuela e Rússia. Nesses países, uma parcela maior da receita nacional vai para o pagamento dos essenciais. Porém, em democracias o “bolo”, por assim dizer, é maior e pode ser que mesmo uma parcela menor indo para bens privados pode ser mais recompensador para aqueles que recebem esse dinheiro via corrupção, que há mesmo em países bem desenvolvidos.

Os autores então comparam dois países, Turquia e Irã, que seguem a mesma religião (embora sejam de grupos étnicos diferentes) e com tamanho populacional semelhante, mas várias outras diferenças. Como dito no vídeo anterior, Irã é uma autocracia de longa data, enquanto que a Turquia é uma democracia, apesar de imperfeita. Segundo a Transparência Internacional, o Irã está classificado em 146 de 178 no ranking de corrupção, enquanto que a Turquia está em 56º. A renda per capita dos dois países é bem próxima em paridade de poder de compra, apesar da Turquia não contar com receita de petróleo, diferente do Irã. Os impostos são maiores no Irã, apesar do petróleo. Eles têm um grupo bem curioso chamado de Bonyards, que não pagam impostos, não são acusados de corrupção e estima-se que gerenciem entre 20 e 25% da renda iraniana. Essa é a própria definição de benefícios privados.

Se a Turquia fosse gastar o mesmo em termos monetários que o Irã gasta para comprar a coalizão vencedora, precisaria gastar uma porcentagem menor do PIB porque é um país mais rico. Porém, o tamanho da coalizão vencedora dilui a receita individual dos recebedores e diminui o poder de comprar lealdades.

Porém, nem tudo está perdido para líderes em democracias. Eles podem recorrer a bens públicos de uma forma parecida com bens privados, optando por políticas que privilegiam um grupo e esperando que isso seja suficiente para ou leva-los ao poder ou lá mantê-los. Muito se discute sobre ideologia, eficiência das políticas públicas e tudo o mais, mas tudo pode ser resumido a conquistar e manter o poder, como tudo em política.

Um exemplo de como bens públicos podem ser utilizados para comprar votos vem da Tanzânia, já mencionada anteriormente. O país pode ser considerado uma democracia em transição, com o número de essenciais e intercambiáveis aumentando, mas com a coalizão vencedora não sendo tão grande. Aqui especificamente estamos falando das eleições parlamentares para o Bunge, que inclui uma cota de 25% para mulheres, o que parece ser uma ótima prática, mas reduz o tamanho da coalizão vencedora. O presidente pode influenciar o resultado das eleições parlamentares através da distribuição de subsídios para a plantação de milho, a principal cultura agrícola do país. Essa distribuição não é de acordo com a necessidade ou a produtividade do local, e sim com o tamanho do distrito e sua influência para as eleições. Se o distrito for grande, então isso significa que a coalizão vencedora nesse distrito é grande, então, não vale a pena. Mais vale comprar votos em distritos menores que ainda assim podem gerar um bom número de cadeiras para o parlamento, criando a base de apoio para o presidente.

Rússia é outra democracia em transição, mas, dessa vez, em transição para uma autocracia. Os líderes desse país adotam algumas táticas interessantes. Uma delas é pagar pouco a polícia e dar carta branca para que ela seja corrupta, o que mais do que compensa a baixa remuneração formal. Corrupção política também é ignorada pelas autoridades, exceto quando é conveniente para o líder acusar alguém de corrupção, como ocorreu com o rebelde Mikhail Khodorkovsky. Essa é uma maneira ilegal de comprar apoio de essenciais na forma de benefícios privados, mas bastante eficaz em autocracias.

Outro tipo de corrupção é o desvio de ajuda interacional, dinheiro destinado por países desenvolvidos para auxiliar países pobres, que, mesmo após décadas de ajuda, continuam pobres. Isso ocorre porque o líder desvia esse dinheiro, não necessariamente para si, mas para recompensar a sua coalizão vencedora. Isso ocorre mesmo que o auxílio venha em bens, o líder entregando esses bens para os seus compadres que revenderão no mercado negro.

Suborno e corrupção ocorrem em organizações privadas também, como o COI e a FIFA, que ficam em uma região cinzenta com elementos privados e públicos, procurando adotar o que é mais conveniente em cada um. Seus eventos, Olimpíadas de Inverno e de Verão e Copa do Mundo, movimentam muito dinheiro e as cidades ou países-sedes estão bastante interessados em atrair o evento. Para isso, procuram oferecer recompensas aos poucos membros dessas organizações que determinam as sedes, seja dando suborno simples e direto, seja fazendo uma boa apresentação do país ou cidade, ou seja, dando uma bela festa para os votantes. Essas instituições são sempre ávidas por controlar o fluxo do dinheiro, como a sua logomarca ou produtos relacionados ao evento, seguindo uma das regras da política. Essa é a maneira de seus dirigentes se manterem no poder por década a fio.

Para o COI especificamente, são necessários apenas 58 votos para eleger os seus principais executivos para uma organização que movimenta bilhões de dólares. Na discussão sobre agente-principal, quem é o principal do COI e da FIFA? Eu mesmo não sei a resposta e a única coisa que posso pensar é um genérico “esportes olímpicos” e “futebol”. Os eleitores do COI, os membros do comitê olímpico, não são os donos do COI e possuem uma série de interesses que nem sempre são o melhor para o esporte. Ou seja, essa é uma instituição em que os principais não são nem mesmo parte dos intercambiáveis, o que faz com que a sua organização política seja problemática. Mesmo que tenhamos algumas boas almas no comitê, bastam 58 corruptos no COI para que as decisões não sejam as melhores para os esportes olímpicos, o que abre uma imensa oportunidade de extração de benefícios privados.

Na FIFA, a escolha de sedes depende da maioria do comitê executivo, composto por 24 membros. Ou seja, você só precisa comprar o apoio de 13 pessoas para conseguir sediar uma Copa do Mundo, com todos os benefícios que ela pode trazer, nenhum deles para a população ou para a economia do país-sede.

Em empresas, o benefício privado que os altos executivos extraem são remuneração e bônus vultuosos que eles próprios definem. Há um movimento nas discussões sobre governança corporativa a respeito do Say on Pay, ou seja, que os acionistas devem opinar sobre a remuneração dos executivos. No Brasil, isso já é lei, a assembleia de acionistas devendo aprovar a remuneração executiva. Mas, quando a coalizão vencedora é pequena, em termos de número de pessoas, é mais fácil para os administradores da empresa conseguirem maiores pacotes de remuneração.

Um grande problema da corrupção, além da impunidade, é que os organismos que procuram combatê-la sofrem fortes pressões, inclusive físicas, justamente onde são mais necessárias, ou seja, nos países mais corruptos. Aqui temos um problema de ovo e galinha, ou seja, os países mais democráticos são menos corruptos porque tem melhores mecanismos de combate à corrupção ou possuem melhores mecanismos porque são menos corruptos? De todo modo, cooperar com o combate à corrupção não faz bem para a saúde em autocracias ou em democracias altamente corruptas.

Mais perigoso do que xeretas se metendo onde não devem ao investigar a corrupção é tomar como garantida a coalizão vencedora. Na organização do gasto público, o líder precisa colocar em primeiríssimo lugar a compra de apoio da coalizão vencedora. Depois, com o dinheiro que sobra, pode gastar em bens públicos para melhorar a vida da população ou com a sua conta secreta, fica a critério do líder. Mas nunca deve pagar de menos os essenciais, e nem demais também, isso podendo custar o seu cargo e até a sua vida. Se até o imperador Júlio César rodou por ter negligenciado os seus apoiadores, o que dizer de líderes menos poderosos.

Exemplo de líderes que privilegiaram a sua conta bancária são vários, como Milosevic na Iugoslávia, Saddam Hussein no Iraque, Papa Doc Duvalier no Haiti entre outros. Os recordistas devem ser Suharto da Indonésia e sua esposa, a Sra. Tien, apelidada de “Sra. Tien Percent”, a estimativa sendo que eles roubaram US$ 35 bilhões dos cofres públicos. O pior de tudo é que eles ficaram muito tempo no poder, chegando a 30 anos em alguns casos, e vários saíram sem morrerem ou serem mortos e viveram uma boa vida depois. Nenhum brasileiro individual chega ao nível desses, não que saibamos, porque aqui a coalizão vencedora é maior e a vigilância é maior do que nessas autocracias. Podemos dizer que a corrupção no Brasil não é para favorecer o líder pecuniariamente, e sim mantê-lo no poder.

Curiosamente, leis mais estritas de corrupção podem ter o efeito contrário ao desejado, dando mais poder para o líder usar a corrupção contra aliados dissidentes. Em países muito corruptos, o líder sabe de tudo o que acontece, porque isso o ajuda a se manter no poder. Aumentar as penas, nesse caso, só vai dar mais poder de barganha para o líder substituir um essencial rebelde por outro extraído da base de intercambiáveis sedentos para fazer parte da coalizão vencedora. Para reduzir a corrupção, seja no ambiente político, corporativo ou organizacional (caso do COI e FIFA), o que é necessário é expandir a coalizão vencedora, o que envolve o aumento dos intercambiáveis, ou seja, dar a mais pessoas o poder de tomar decisões políticas.

A conclusão é: primeiro de tudo, compre o apoio da coalizão vencedora e faça de tudo para se manter no poder. Em segundo lugar, decida o mix de bens públicos e bens privados para si mesmo, seja benefícios como um estilo de vida luxuoso ou uma conta secreta recheada. No fim, é bem possível que tenhamos um ditador benevolente que reprime a população se tiver que fazer, mas se preocupa com crescimento, emprego e até bens públicos para melhorar a vida da população. Mas, acima de tudo, está a sobrevivência política.