domingo, 13 de setembro de 2015

Raízes do Brasil (#4) - Nossa Revolução



No capítulo 6, Sérgio Buarque de Hollanda analisa o período pós-independência onde, na parte cultural, podemos dizer que tudo mudou para continuar igual. Volta a citar o “apego singular aos valores da personalidade”, afirmando que o brasileiro raramente se aplica de corpo e alma a um objeto exterior a nós mesmos e a atividades em que o sujeito se submeta a um mundo distinto dele, a personalidade individual não suportando ser comandada por um sistema exigente e disciplinador, nas palavras do autor.

No começo do capítulo, Buarque de Hollanda vai fazendo afirmações bem fortes em sequência. Um exemplo: “É frequente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimenta, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares”, bastando que tais ideias tenham uma roupagem vistosa como palavras bonitas e argumentos sedutores, em mais um exemplo da concepção do autor de que um traço nacional é a valorização das aparências, inclusive no que se refere ao ambiente social.

No que se refere ao trabalho, o objetivo é a busca da satisfação e o trabalho como um fim em si mesmo, e não como uma obra, um finis operantes, a finalidade daquele que obra, e não finis operis, a finalidade da obra. As atividades profissionais acabam por ser quase um acidente na vida dos indivíduos e na época do autor, segundo ele próprio, era raro termos pessoas que se limitassem a uma profissão. Nessa parte, o autor fala do “vício do bacharelismo”, que também tem raízes lá de Portugal, mas que persistiu na colônia e era mais uma amostra da importância demasiada a títulos para valorizar a personalidade individual. O bacharelismo seria uma reminiscência da antiga importância que era dada a títulos, só que ao invés de títulos de nobreza, o de doutor. Nas palavras do autor: “A dignidade e importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e, em alguns casos, podem libertá-lo da necessidade de uma caça incessante aos bens materiais, que subjuga e humilha a personalidade”, retomando a ideia de depreciação do trabalho manual analisada em capítulos anteriores. No final dessa parte do capítulo, Buarque de Hollanda parece considerar que os brasileiros são parecidos com o Conselheiro Acácio, ideia minha, não uma comparação direta do autor, afirmando: “O prestígio da palavra escrita, da frase lapidar, do pensamento inflexível, o horror ao vago, ao hesitante, ao fluido, que obrigam à colaboração, ao esforço e, por conseguinte, a certa dependência e mesmo abdicação da personalidade, têm determinado assiduamente nossa formação espiritual”.

Na sequência do capítulo, o autor passa a analisar a aceitação das ideias do positivismo de Auguste Comte. Não cabe aqui entrar em maiores detalhes, mas essa corrente filosófica, grosso modo, valorizava o conhecimento científico que seria a única forma de conhecimento verdadeira e razão do progresso da humanidade, teve grande influência no Brasil a ponto de um dos lemas do Positivismo, “Amor como princípio, ordem como base e progresso como objetivo” ter influenciado o lema que está na nossa bandeira, Ordem e Progresso. O argumento do autor é que essas ideias se encaixavam facilmente com o ideário da época, seguindo algumas conclusões já analisadas aqui, a certeza do triunfo final das novas ideias que o mundo acabaria por irrevogavelmente aceitar. O apelo era, nas palavras do autor, o repouso que essas ideias permitem ao espírito, as definições irresistíveis e imperativas do sistema de Comte. E os positivistas brasileiros eram, paradoxalmente, negadores. Citando Buarque de Hollanda: “Viveram narcotizados por uma crença obstinada e pela certeza de que o futuro os julgaria segundo a conduta que adotassem com relação a tais princípios”. Mais praticamente, muitos dos adeptos do positivismo se afastavam da política e se colocavam acima desses assuntos inferiores.

Buarque de Hollanda diz que um de nossos traços característicos é a “crença mágica no poder das ideias”, já que importamos ideias de “terras estranhas” sem saber como se ajustariam à realidade local, se referindo à ideologia impessoal do liberalismo democrático. Aspectos dessa ideologia foram incorporados na medida em que não entravam em conflito com o conjunto de características nacionais, como o horror às hierarquias e à impessoalidade. Em mais uma afirmação bem forte, o autor declara que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. Essa foi uma dessas ideias importadas pela aristocracia rural e semifeudal brasileira e adaptada aos seus direitos e privilégios, até entrando em conflito com o que era pregado na Europa ou na América do Norte de onde essas ideias vieram.

Dessa forma, movimentos reformadores vieram de cima para baixo e tiveram mais inspiração intelectual ou sentimental do que de ordem prática. Dois grandes momentos de nossa história, a Independência e a Proclamação da República, são bem emblemáticos, movimentos vindos da elite com nula participação popular.

No campo das artes, Buarque de Hollanda faz uma conexão interessante entre a chegada da corte real portuguesa em 1808 e o Romantismo. Esse evento não chegou a arruinar as estruturas da sociedade colonial, mas aumentou a importância dos centros urbanos e provocou algumas mudanças sociais. Incapazes de responder às “exigências impostas por um outro estado de coisas”, nas palavras do autor, a existência mais  regular e abstrata das cidades provocou uma certa crise nos intelectuais manifesto em expressões como “o cárcere da vida” ou outras equivalentes para reclamar da existência, bem ao estilo do Romantismo, estilo artístico mais voltado ao subjetivo e no individual e na expressão forte de emoções, grosso modo, juntando um nacionalismo que adotou um “indianismo de convenção”, na avaliação do autor.

A adoção entusiasmada desse movimento artístico acabou tendo aspectos negativos na opinião de Buarque de Hollanda, um movimento negador da realidade em um momento que deveria ser de afirmação após a independência. E também sequer acrescentou algo de novo artisticamente, sendo uma linguagem luxuriosa para dizer a mesma coisa, nas palavras do autor. Mas demonstrou bem a característica dos nossos “homens de ideias”, “homens de palavras de livros” que procurava recriar um mundo mais dócil aos desejos e devaneios, uma forma de não rebaixar ou sacrificar a individualidade. Essa própria devoção aos livros era até uma forma de demonstrar superioridade como o grau de bacharelado mencionado a pouco, e um exemplar desse tipo de atitude foi o próprio Imperador Dom Pedro II.

Certamente que não parece uma ideia tão ruim ter gente desse tipo em um país onde a média de livros lidos é 2 por ano, mas a questão é que no momento em que a velha aristocracia rural declinava, precisávamos de uma elite intelectual melhor do que isso para ocupar esse vazio. O saber era visto como instrumento para elevar seu portador acima dos seus pares e dignificação individual, ou seja, erudição por erudição, palavras rebuscadas e estrangeirismos apenas para impressionar. Isso retoma uma ideia já apresentada no livro, de que o trabalho mental era considerado superior não por sua utilidade prática, mas por diferenciar daqueles que fazem o trabalho braçal. Ao mesmo tempo, havia uma simplificação das questões de ordem mais prática, colocando as coisas ao “alcance de raciocínio preguiçosos” e atraindo através de frases de efeito ou fórmulas mágicas. Isso tudo é negativo, pelo que entendi, porque se dava em um momento em que precisávamos de boas ideias postas em prática entre a Independência e a República.

Por todo esse capítulo, percebi certos paralelos entre o que Buarque de Holanda escreveu na década de 1930 e hoje, mas vou deixar para vocês identificarem a maioria desses pontos em comum. Um trecho que gostaria de mencionar é esse: “Não têm conta entre nós os pedagogos da prosperidade que, apegando-se a certas soluções onde, na melhor das hipóteses, se abrigam verdades parciais, transformam-nas em requisitos obrigatórios e únicos de todo progresso”. Eu consigo imaginar quais seriam algumas dessas verdades parciais nos dois lados do espectro político, vocês podem pensar em alguns casos também, e Buarque de Holanda cita a “miragem da alfabetização do povo”, que era apresentado com muita “retórica inútil” como a solução para todos os males do país, assim como, diria eu, é feito com a educação hoje em dia. “Certos simplificadores”, nas palavras do autor, diziam que se fizéssemos isso seguindo o exemplo dos Estados Unidos seríamos a segunda, talvez terceira potência mundial. Até hoje o Brasil não está plenamente alfabetizado, ao menos em termos funcionais, e alguém poderia dar razão a esses “pedagogos da prosperidade” por conta disso, mas o que o autor argumenta é que o problema do Brasil à época era a falta de cultura técnica e capitalista, que os Estados Unidos tinham apesar de sequer terem erradicado o analfabetismo. Ou seja, desacompanhada de outros elementos fundamentais, saber ler e escrever não serve para tanto assim e a própria discussão em termos tão rasos desviava a atenção de assuntos mais importantes.

Por fim, vou comentar o sétimo capítulo do livro, a Nossa Revolução. A revolução a que Buarque de Holanda se refere não é uma grande revolução como a Americana ou a Francesa e não tem um único marco, mas vários em uma “lenta revolução” na caracterização do autor, os principais sendo a Abolição da Escravatura e Proclamação da República. Nessa revolução, o centro da vida brasileira deixaria definitivamente o meio rural e iria para os meios urbanos, que não mais serviam como complemento para o campo e na verdade acabou havendo uma inversão de papéis facilitado pela melhoria nas comunicações e transportes.

Contribuiu também, na visão do autor, o declínio da produção açucareira, que incentivava a estratificação da sociedade, e a sua substituição pela lavoura do café que tendia a nivelar mais a sociedade. As análises da época eram a de que a cultura cafeeira não exigia extensas porções de terra ou grande uso de capital, a redução do latifúndio ajudando a dispersar a propriedade. Buarque de Holanda aponta alguns erros nessa análise, que não corresponde exatamente à realidade na maior parte das vezes, mas em algumas partes do país, como o oeste de São Paulo, haveria um distanciamento maior das formas coloniais de exploração da terra e o próprio relacionamento com o campo, para muitos uma fonte de sustento e renda, mas não um modo de vida tanto que muitos fazendeiros passaram a residir nas cidades. Porém, houve um efeito colateral indesejado dessa troca de cultura, que foi o menor uso da terra para a produção de gêneros alimentícios, que acabaram por ficarem mais caros.

A Abolição não afetaria de maneira tão significativa a produção de café, cultura que já estava se adaptando ao trabalho remunerado, mas seria fatal para os produtores de açúcar e seria a etapa final do declínio dos antigos senhores rurais e de sua influência na política brasileira. A urbanização “contínua, progressiva, avassaladora” catalisada pela Abolição, embora esse não tivesse sido o único fator, fez com que o meio rural perdesse influência, mas, segundo Buarque de Holanda, não houve a substituição por algo realmente novo. Apesar de a base ter desaparecido, o estado brasileiro preservou resquícios da monarquia como “relíquias respeitáveis”.

O próximo tópico do capítulo é o aparelhamento do estado, marcado por “maturidade precoce” e “estranho requinte” nas palavras do autor. O estado brasileiro no império seguia uma ideia de não ser despótico, o que contrariaria a “doçura de nosso gênio”, palavras do autor, mas que mantivesse compostura, grandeza e solicitude. Isso procurava se manifestar no âmbito nacional, mas também internacional, querendo passar uma imagem de um “gigante cheio de bonomia superior para com todas as nações do mundo”. O Brasil não ambicionou ser um conquistador e até adotava soluções bastante pacíficas, como a abolição formal e até prática muito antes disso da pena de morte, seguindo o padrão de sociedades mais avançadas e se envaidecendo da ótima companhia. O resultado dessas correntes, porém, é o desarmamento de expressões menos harmônicas e negação da espontaneidade nacional, esse último ponto, me parece, mais relacionado com a ideia de que o ordenamento social necessitava de leis escritas quando a disciplina social espontânea pode surgir sem isso, como foi o caso da Inglaterra. Havia um otimismo grande com regras racionais e regulamentos como ordenadores da vida social. Nas palavras do autor: “Nesse erro se aconselharam os políticos e demagogos que chamam atenção frequentemente para as plataformas, os programas, as instituições, como únicas realidades verdadeiramente dignas de respeito”, em outro trecho que talvez ainda seja bastante atual. Ainda predomina o emotivo sobre o racional, mas, quando conveniente para as oligarquias, o racionalismo poderia ser empregado para manter o status quo.

Como já mencionado, muitas das práticas políticas do império e do começo da república foram importadas do exterior, especialmente da Revolução Francesa, e adaptada à realidade nacional. Porém, a democracia exigia uma impessoalidade que não se adaptava muito bem ao caráter nacional e nem, de forma mais ampla, à América Latina. O caudilhismo anti-liberal que estava em voga na época do livro era impessoal em essência e a democracia só triunfaria de verdade quando esse antiliberalismo fosse superado.

E essa vitória só viria com uma revolução que extirpasse as estruturas arcaicas que o país ainda não tinha conseguido eliminar. Mas essa revolução não precisava, e, segundo o autor, não deveria ser violenta e na verdade já vinha se processando de forma que vivíamos à época entre dois mundos, um morto e o outro que luta por vir à luz. E essa revolução não deveria ser horizontal, ou seja, mera troca dos que estão no poder, e sim uma revolução vertical que trouxesse novos elementos para a política. Não seria o caso de eliminar as classes superiores, e sim de amalgamá-la com as demais classes que também tinham lá os seus defeitos ao mesmo tempo que as classes superiores tinham homens de bem.

No Brasil, porém, se levantavam contra essa revolução, além das pessoas que se beneficiavam do status quo, as “constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas” beneficiando pessoas e oligarquias. Inclusive, era possível uma alternância no poder, mas para deixar tudo como está. Como se dizia antes, nada mais parecido com um saquarema no poder do que um luzia. Ou seja, uma revolução horizontal só resultaria na troca de um personalismo por outro sob o disfarce de se fazer democracia e era necessária outra abordagem, abolir esse personalismo que tornava tão estranha a ideia de democracia, de uma entidade imaterial e impessoal pairando sobre os indivíduos.

Em essência, essa é a análise de Sérgio Buarque de Holanda presente nos dois últimos capítulos do livro Raízes do Brasil. Resumindo de maneira rápida as ideias do livro, os principais pontos do autor são de que o brasileiro é um povo com uma forte propensão de encarar tudo com um fundo emotivo, o que se reflete em diversas esferas da vida social, inclusive na organização política e na dificuldade em separar o público do privado.

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