segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Manual do Ditador (#10) - Povo em revolta




Um líder de sucesso sabe que precisa colocar as necessidades dos seus apoiadores essenciais acima das necessidades do povo. Esse é o básico da sobrevivência política, mas pode ocorrer da situação do país degringolar e o povo começar a ficar insatisfeito. Essa não é uma ameaça tão grande quanto uma revolta dos essenciais em termos de intensidade ou frequência, mas pode ocorrer e o líder precisa saber conter uma revolta popular.

Em autocracias, o povo enfrenta um grande dilema na hora de se revoltar. São eles que sustentam o líder e a sua coalizão vencedora, mas em autocracias o estado é muito mais forte do que o povo. Se o líder é sustentado por um governo estrangeiro benevolente ou recursos naturais, e não pelo povo, a situação fica pior.

Mas chega um momento em que o povo simplesmente não aguenta mais. Geralmente, há uma espécie de gota d'água, um momento marcante que faz com que as pessoas se decidam a arriscar as vidas para enfrentar o governo, seguindo alguns primeiros corajosos que tomaram a vanguarda e deram alguma esperança de vitória.

Há um delicado equilíbrio. Os líderes em autocracias basicamente fazem de tudo para amedrontar a população, convencendo as pessoas de que se opor ao governo significa morte, prisão ou miséria. A vida em um governo desses é horrível, mas o custo de enfrentar o governo é simplesmente muito grande.

Nas revoluções, quando um grupo se adianta para enfrentar o governo, os oposicionistas proclamam as suas intenções e prometem reformas democráticas, melhorias sociais, unificação nacional, ou seja, lá o que o povo aspira. Isso serve mais para chamar o povo para as ruas para apoiar os revolucionários, mas nunca é levado adiante quando, e se eles tomam o poder. Vide Rússia ou China indo para o comunismo, por exemplo. O povo se revolta contra o regime esperando melhorar a vida, mas podem simplesmente estar trocando uma autocracia por outra, talvez pior do que a anterior.

Mas, antes de tudo, vamos examinar como o incumbente reage a uma revolta popular. Há duas maneiras de proceder. Pode aumentar a democracia para melhorar a vida das pessoas ou aumentar a ditadura tornando pior ainda a situação e aumentando os riscos para insurgentes. Essa segunda estratégia é, obviamente, a mais efetiva. A lealdade do exército é chave nesse ponto. Por mais que as pessoas fiquem mais fortes juntas, o exército ainda contém mais força para reprimir a população. Muitos regimes caem porque o exército não protege o líder, e não o faz por não estar sendo bem recompensado ou por esperar ser melhor recompensado com um novo líder. Toda revolução bem sucedida contou com a deserção parcial ou total do exército na proteção do atual regime.

O importante para o líder é reprimir a revolta o quanto antes com a máxima força possível. Se deixar, o movimento pode crescer e ficar mais forte, se tornando mais difícil de debelar mesmo com a ajuda do exército.

Crises econômicas, como a que a França sofria antes da Revolução Francesa ou a da Rússia durante a Primeira Guerra Mundial, são a oportunidade perfeita para a tomada do poder, não só porque o povo está mais revoltado, mas porque o exército deve estar sendo mal pago. Mais recentemente, temos o Egito, onde o dinheiro começou a escassear, o exército começou a não receber a sua parte e o ditador de longa data acabou sendo derrubado por protestos populares. Assumiu um regime pior ainda que foi derrubado pelos militares, mas é assim que geralmente ocorre.

Protestos em democracias e autocracias são bem diferentes. Em democracias, protestar é fácil e barato, os cidadãos tendo liberdade de reunião, de expressão e de imprensa. Mas há também menos motivos para ir para protestar, embora possam fazer isso quando o líder adota uma política impopular, com guerra.

Em autocracias, por outro lado, há muito mais motivos para protestar, inclusive para derrubar o governo atual, mas poucos meios de se fazer isso, os cidadãos não tendo as liberdades necessárias para se manifestar. Isso acaba reduzindo a produtividade do povo, então o líder precisa saber equilibrar os bens públicos que ele vai tolerar a fim de ao mesmo tempo dinamizar a economia e mantê-lo no poder a salvo de protestos. Esses bens públicos incluem as liberdades citadas agora há pouco. Por isso que recursos naturais e ajuda externa são excelentes: o líder não precisa da ajuda do povo para se manter no poder.

Toda revolta popular começa com um evento (podemos chamar de choque) que dispara revoltas simultâneas em diversos lugares. Esse choque pode transbordar as fronteiras nacionais. Por exemplo, a queda de uma república soviética deu força para que as outras repúblicas se revoltassem e a União Soviética ruísse. A chamada Primavera Árabe de 2011 começou na Tunísia e foi se espalhando para outros países, como o já mencionado Egito.

Esses choques podem ser desastres naturais, crise sucessória, desaceleração econômica, além de algum evento social, como no caso da Tunísia, onde o suicídio de um comerciante disparou a chamada Revolução de Jasmin. Eleições podem ser uma fonte de choque mesmo em autocracias. Ditadores adoram eleições, desde que eles ganhem, e podem adotar diversas manobras para determinar o resultado da eleição. Porém, isso pode dar errado e dar início para uma revolução. Uma eleição pode dar força para a oposição que utiliza esse evento para ganhar corpo e momento. O começo do fim de Samuel Doe, da Libéria, foi a convocação de uma eleição, por exemplo.

Desastres naturais são curiosos, já que por um lado enfraquecem, empobrecem e matam as pessoas, mas formam campos de refugiados, que podem ser utilizados para organização política de uma forma que não seria possível de outro modo, ainda mais com o estado ocupado com outras coisas além de reprimir o povo. Foi o que ocorreu na Cidade do México em 1985 após um terremoto de 8,1 na escala Richter, gerando campos de refugiados que serviram para a mobilização política de milhares de pessoas descontentes e desiludidas pelo governo. Esse foi um fator para a democratização o México.

Dessa forma, desastres naturais são ruins para o governo, mas não pelos motivos certos. Mas a ameaça para a sobrevivência política pode ser contornada com as ações certas. Em Mianmar, o governo não cometeria o mesmo erro do México. O ciclone Nargis em 2008 causou um imenso estrago no país e mobilizou a comunidade internacional para auxiliar. O governo aceitou ajuda na forma de dinheiro, que não ia para ajudar os que precisavam, ou de bens, que chegavam a quem precisava depois de passar pelo mercado negro. Mas não deixa forasteiros entrarem no país. E quando os campos de refugiados se tornaram um foco de resistência política, o exército foi enviado para reprimir as manifestações. Cruel, mas do ponto de vista da sobrevivência política faz todo sentido.

Em democracias, desastres naturais são ruins para o líder, que pode perder o apoio do eleitorado se não souberem gerenciar bem a emergência. Após o furacão Katrina, por exemplo, o governo estadual e federal não foram competentes o suficiente para tomar uma ação para remediar o problema e os republicanos foram punidos nas urnas no estado. Não por outro motivo, morrem menos pessoas em democracias do que em ditaduras resultado de desastres naturais.

Seja pelo motivo que for, há sempre a ameaça de rebeliões em um país e o líder precisa escolher se vai reagir a isso com repressão (a forma mais eficiente, quase sempre eficaz, mas nem sempre possível) ou com diálogo (sempre uma opção perigosa). Mianmar é um caso emblemático. Esse é um país abençoado para o líder, cheio de recursos naturais como madeira, pedras preciosas e petróleo que facilitam governar sem a ajuda do povo, o que torna a população pobre e o líder e sua coalizão ricos. Como já mencionado, eles reprimiriam uma organização política que se formava nos campos de refugiados. Não era a primeira vez que reprimiriam fortemente a população. Em 8 de agosto de 1988, um grande protesto foi realizado e fortemente debelado pelos militares. Antes mesmo do ciclone Nargis, houve um grande protesto em 2007 com a participação de monges, que são reverenciados no país. Mesmo assim, as manifestações foram reprimidas e o General Than Shwe, que governava o país há 16 anos, se manteria no poder.

Por outro lado, alguns governos não conseguem evitar a revolução ou se democratizam por conta própria para evitar o golpe. Nesse segundo grupo, temos Gana, onde Jerry Rawlings, que governou o país em vários mandatos, decidiu abrir o regime em 1992 e se tornaria o primeiro presidente eleito do país e até ganharia a reeleição quatro anos depois. No primeiro caso, temos alguns poucos países que se democratizaram após a revolução, como os Estados Unidos e África do Sul, e outros que só trocaram uma ditadura por outra, como Cuba, Rússia, China, México, Quênia e por aí vai. No primeiro caso, desde o início havia uma coalizão grande para ser satisfeita, o que resultou na adoção de práticas democráticas. No segundo, ou não era esse o caso ou os revolucionários deram um jeito de restringir o número de apoiadores essenciais.

De forma geral, se o país é rico em recursos naturais, o caminho natural da revolução é uma ditadura, chegando à fonte de dinheiro do país, comprando o apoio dos essenciais e se mantendo no poder. Se o país não tem muitos recursos, precisa de uma economia produtiva, o que requer uma infraestrutura de comunicações e transporte que podem ser usadas contra o líder. Ou pode ocorrer do país estar em uma situação econômica ruim e se deteriorando, como a União Soviética da época de Gorbachev, que decidiu-se por liberalizar a economia para tentar salvar o regime arrecadando mais dinheiro. Porém, isso não significa que Gorbachev não agiria como um ditador, reprimindo movimentos separatistas em países como Lituânia, Letônia e Estônia.  Hoje em dia, a Rússia está trilhando o caminho de volta para a autocracia, sem precisar se preocupar tanto com dinheiro, já que possui bastante petróleo que está sendo melhor utilizado agora.

Há ainda um terceiro caso, onde o autocrata se compromete com a democratização, cumpre a sua palavra, mas, no meio do caminho, quando a crise que o levou a medidas tão drásticas passa, ele volta atrás e volta a fechar o regime. Esse foi o caso de Mugabe no Zimbábue e, apesar da longa janela de tempo, da própria Rússia.

Voltando a Gana, Jerry Rawlings não abriu o regime econômica e politicamente porque achava que essa era uma grande ideia e que faria seu povo feliz. O fez porque o governo estava sem dinheiro e que a melhor maneira de arrecadar dinheiro era melhorar a produtividade da economia, liberar o câmbio, seguir a cartilha do FMI e isso tudo envolvia conceder mais liberdades políticas e também, indiretamente, meios para que as pessoas se reunissem e se comunicassem. E acabou dando certo, tanto que ele foi eleito e reeleito presidente. Seja como for, Gana hoje é uma democracia e é relativamente próspera para padrões africanos.

Ou seja, crise econômica é uma crise política com especial ênfase nos países autocráticos. Vendo de fora, os países democráticos podem utilizar crises econômicas em autocracias como uma oportunidade para democratizar o país ou deixar que ele se democratize. O mais importante de tudo é o país estrangeiro não salvar o ditador, por exemplo, perdoando a dívida externa ou dando ajuda externa. Isso só serve para perpetuar o líder no poder. Se o líder adotar compromissos críveis de democratizar o país, essa pode ser uma alternativa, mas é necessário ter cuidado porque autocratas mentem bastante (assim como democratas). Em uma transição, é necessário ter extrema cautela, já que novos líderes costumam se travestir de democratas, mas apenas por tempo suficiente para formarem a coalizão vencedora e depois se mostrarem perfeitos autocratas.

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