No último
vídeo dessa série, vou voltar a falar sobre Brasil, agora de um assunto bem
mais próximo do nosso dia a dia, que é a burocracia. Para isso, usarei como
fonte principal o livro “O
Dinossauro” de José Oswaldo de Meira Penna, mas também outros livros e
artigos. Como gameplay, Max
Payne 3, um jogo que não tem a ver diretamente com o assunto em questão,
mas se passa no Brasil de hoje.
Como todo
mundo sabe, o Brasil é o país da burocracia, da firma reconhecida, das dúzias
de vias e das enormes filas em repartições públicas. Para traduzir isso em
números no âmbito da economia, segundo o relatório Doing
Business de 2014, o Brasil está na classificação 116 entre 189 países na
facilidade de fazer negócios, uma modesta melhora na comparação com 2013,
quando o país ocupava a posição 118. Para abrir uma empresa, são necessários 13
procedimentos que demoram 107,5 dias. A média da OCDE são 5 procedimentos e
11,1 dias. Para pagamento de impostos, são 9 pagamentos em média que demoram
2600 horas para que as empresas cumpram a legislação tributária, contra média
de 175 horas na OCDE e 369 na região da América Latina e Caribe. O advogado Vinicius
Leoncio se propôs o desafio de reunir toda
a legislação tributária em um único livro, que resultou em um modesto livro
de 7,5 toneladas, candidato a maior livro do mundo com o peso de dois
hipopótamos.
Como explicar
esse “culto ao papelório” em um país que não é um povo de intelectuais,
cerebrino, amante de letras. O que explica tal formalismo e rigidez no país da
flexibilidade, do jeitinho, da cordialidade que foi explicada em outro vídeo?
A resposta
talvez esteja em dois conceitos abordados no vídeo anterior sobre o Brasil, o
patrimonialismo e o homem cordial. A forma como o Brasil foi colonizado também
ajuda a explicar essa situação. Desde o início, tudo dependia de uma ordem
superior, através de decretos, alvarás e ordens vindas de Portugal. Toda a
economia colonial dependia da metrópole, impedindo o desenvolvimento da
iniciativa privada. A administração do Brasil Colônia foi altamente
centralizada e mesmo os latifundiários não escapavam dos registros e controles
da metrópole. Da nomeação a cargos públicos até a condução da economia, tudo
era função do estado. Por conta disso, Raimundo Faoro, autor de Os Donos do Poder, via os brasileiros
como inativos politicamente e incapazes de se organizar para se contraporem ao
autoritarismo do governo central.
Essa
estrutura patrimonial-burocrática foi sendo passada através das gerações e dos
regimes políticos, resistindo à independência e depois à república. Os donos do
poder a que Raimundo Faoro se referia, os componentes do estamento burocrático,
sempre arranjaram maneiras de manter o seu poder e extrair benefícios dele. A
profusão de leis, que sustenta esse arranjo, cria a situação bem peculiar do
Brasil de que as leis pegam ou não pegam e tudo depende da interpretação dos
funcionários responsáveis por sua validação, de acordo com os seus interesses. Nesse
ponto, na hipertrofia legislativa, também surge a figura do criar dificuldades
para vender facilidades. Há também a tendência do funcionário burocrático de
empurrar os problemas para cima, para que sejam resolvidos pelo “você sabe com
quem está falando?”.
O estado
cresceu recebendo cada vez mais atribuições, as pessoas vendo o estado como a
solução de seus problemas e que oferece amparo e proteção. Havia uma
mentalidade generalizada de dependência do paternalismo governamental. Desde o
início, o estado brasileiro era intervencionista, paternal e autoritário.
O livro “O
Dinossauro” de José Oswaldo de Meira Penna publicado originalmente em 1988 traz
vários e vários casos da absurda burocracia brasileira em diversos contextos.
Alguns desses exemplos já não devem valer mais hoje, passados 26 anos, mas
muitas coisas permanecem e outras situações absurdas devem ter sido criadas
nessas mais de duas décadas desde a publicação do livro. No cerne dessa
situação, a profusão de leis interferindo em tudo quanto é aspecto da vida das
pessoas, respaldado por uma Constituição Federal considerada por muitos como
paternalista (Penna consideraria mais maternalista do que paternalista, a
propósito). Se apenas a legislação tributária pesa 7,5 toneladas, imagine o
restante do corpo de leis?
A esse
paternalismo estatal se explica algumas das regras criadas que geram um sem fim
de procedimentos. Penna cita os diversos trâmites para uma estrangeira adotar
uma criança no país em sua época. A preocupação, que pode ser considerada
legítima, é com o tráfico de pessoas, mas a solução para esse caso, a criação
de um processo com infinitos estágios, não é de modo algum eficiente. Para a
grande maioria das situações absurdas é possível ver esse excesso de zelo se
manifestando, como se fosse um pai super cuidadoso protegendo o filho incapaz.
Essa na verdade é hoje uma tendência mundial, tanto que já se criou a expressão
Estado-Babá para se referir às legislações cada vez mais paternalistas que
estão surgindo em diversas partes do mundo, especialmente nos países
desenvolvidos. A esse respeito, tem o “O
Estado Babá” de David Harsanyi.
Penna liga
essa situação ao estado patrimonial, conforme analisado por Sérgio Buarque de
Holanda e outros autores, como Raimundo Faoro e seu Os Donos do Poder. Nessa situação, na ausência de uma distinção
entre público e privado, poderes particulares e vantagens econômicas advindas
do estado são apropriadas pelos particulares. O personalismo também ajuda a
explicar a profusão de procedimentos burocráticos, pois eleva a importância de
um determinado cargo público. Não poderia ser outro o resultado a não ser
corrupção e favoritismos. A própria escolha para muitos cargos públicos, os
cargos de confiança, populares no Brasil como em nenhum outro lugar, se dá por
esses laços de amizade, compadrio ou de sangue. E disso deriva vários “ismos”,
como o empreguismo, o coronelismo, o clientelismo e outras mazelas históricas
brasileiras.
Outra
manifestação do patrimonialismo está na forma como o Brasil se desenvolveu,
principalmente após a Abolição. Na formação do patronato brasileiro,
recorreu-se ao que hoje se chama de Capitalismo de Estado, com uma forte
presença do estado na economia em conluio com empresários. Sob os mais diversos
pretextos, o estado subsidia das mais diversas formas o setor privado, o que
raramente é um arranjo eficiente do ponto de vista econômica e onde o estado, ao
invés do mercado, escolhe vencedores e perdedores. Nesse arranjo, os lucros são
privatizados e os prejuízos socializados. Essa não é uma característica única
do Brasil, o Capitalismo de Estado prevalecendo em países como a China. Um
conceito próximo, mas distinto, é o de Capitalismo de Compadrio, onde há essa
mistura de público e privado que favorece alguns negócios em detrimento de
outros, o que é incompatível com a genuína liberdade econômica. A esse
respeito, tem o livro “Reinventing
State Capitalism” de Aldo Musacchio e Sérgio Lazzarini que deve receber
ainda esse ano uma versão em português. Não li esse livro ainda, mas conhecendo
a obra dos autores, deve ser uma boa leitura. No final das contas, como no dito
popular, empresa privada é aquela controlada pelo governo e a empresa pública é
aquela controlada por ninguém.
Hélio
Jaguaribe foi o autor da expressão “Estado Cartorial” para se referir a essa
cultura da burocracia no Brasil. Outro Hélio, o Beltrão, que ocupou o curioso
cargo de Ministro da Desburocratização entre 1979 e 1983, cargo que seria
extinto em 1986, escreveria em artigo uma descrição perfeita da situação. “O
Brasil nasceu sob o signo do cartório, da ata, do registro e da certidão. Disto
decorre uma certa inclinação a só acreditar que uma coisa realmente acontece
depois que se transforma em documento escrito. Essa tendência foi exacerbada na
administração pública, onde prevalece o princípio oposto ao da presunção da
veracidade. Perante a administração pública, suas leis e regulamentos, vigora a
estranha presunção de que uma pessoa está sempre mentindo até prova em
contrário. Essa presunção mórbida conduz ao absurdo de exigir-se do honesto a prova
de que não é desonesto; de atropelar-se o contribuinte com exigências fúteis”.
Como um
resumo, uma citação do livro de Penna: "Monstro antediluviano, foi a
burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial com seus castelos,
cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles habitam os grandes
barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba dos altos funcionários,
duques e marqueses com sua enorme clientela de gordas escriturárias e
magricelas serventes famintos, que suplementam o salário-mínimo com gorjetas e
comissões. Sobrevivem o foro, a enfiteuse e o laudêmio. Sólidos como o Pão de
Açúcar, resistem ao sopro de renovação os direitos adquiridos, que são muitos:
o direito ao cargo para o qual foi nomeado sem concurso, por ser filho de
fulano ou primo de dona Carmen; o direito à promoção por ser amigo de beltrano;
o direito à reclassificação, por ser amante de sicrano"
Essa situação
perdura até hoje e não sei dizer se as coisas melhoraram. Em termos de
paternalismo estatal, essa tendência só se acentuou nos últimos anos. No livro A cabeça do brasileiro de Alberto Carlos
Almeida vemos esse fato em estatísticas. O capítulo 7, com o título bastante
direto de “Brasileiro ama o Estado”, um grande número de pessoas acha que o
governo deveria controlar empresas de um setor, inclusive de setores que já
foram privatizados e outros que nunca foram completamente estatais, como bancos
e montadoras de carro. Muitos também são a favor de que o governo determine o
que as empresas devem fazer, como determinar salários e o número de banheiros
em uma empresa, ou seja, são a favor da burocratização. 70% das pessoas
acreditam que o governo deveria controlar os preços e 54% os salários. E não é
porque acham que o governo seja mais eficiente, aliás, eles concordam que o
governo é ineficiente e avaliam negativamente o governo. Não obstante, querem
entregar tudo para o governo e restringir a liberdade da bem avaliada
iniciativa privada. Só pode ser amor mesmo!
Seria
altamente benéfico para o país a desburocratização que já foi alvo até de
ministério no passado, mas não há nenhum indício de que isso vá ocorrer.
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