quarta-feira, 2 de julho de 2014

Como a cerveja criou a Bélgica



No último vídeo sobre a Revolta Holandesa, vou falar sobre Bélgica, pulando um pouco a cronologia e indo direto para o final da história e o resultado da guerra. A fonte de informação é o artigo War, Taxes and Borders: How Beer Created Belgium de Koen Deconinck e Johan Swinnen. A gameplay é do Europa Universalis IV na continuação do cenário da Guerra dos Oitenta Anos com os Países Baixos.

A Bélgica é famosa no mundo inteiro principalmente por seu chocolate e por sua cerveja. No que se refere à cerveja, o produto está intimamente relacionada com a história do país e participou de sua criação e separação da Holanda.

Porém, não foi exatamente a cerveja belga que teve esse efeito, e sim a cerveja consumida na Holanda é que gerou receita de impostos suficiente para que os holandeses lutassem contra os espanhóis na Revolta Holandesa, também conhecida como Guerra dos Oitenta Anos entre 1568 e 1648. A Holanda conseguiu a sua independência da Espanha, mas deixou para trás o território que é hoje a Bélgica, a parte sul dos Países Baixos Espanhóis.

As fronteiras da Bélgica foram estabelecidas no Tratado de Münster em 1648, que acabou a Revolta Holandesa com a aceitação da independência pela Espanha. O mais interessante é que essas fronteiras não coincidem com nenhuma outra linha divisória pré-existente, seja cultural, histórica ou geográfica, refletindo sim as posições militares de Holanda e Espanha.

Os Países Baixos eram parte do Império Espanhol e Filipe II tentou centralizar a administração do império em Madri e considerava sua missão suprimir a heresia protestante, o que eram dois fatores de tensão nos Países Baixos. O aumento de impostos e a perseguição aos protestantes resultaram na Revolta Holandesa e na declaração em 1581 da independência da República Holandesa, não reconhecida pela Espanha.

A Holanda era muito menor do que o Império Espanhol e pode ser considerado surpreendente que eles tenham vencido o confronto. A população total das áreas revoltosas era de 75 mil pessoas, contra o gigantesco Império Espanhol. Essa diferença é ilustrada na diferença das demandas, onde os holandeses apenas desejavam a liberdade religiosa e a volta dos privilégios dos nobres, enquanto que a Espanha não discutia abrir mão disso.

Uma combinação de melhora na tecnologia militar, melhora nas táticas de guerra e maior capacidade de financiamento acabou trazendo vantagem para a Holanda, principalmente em um conflito longo e desgastante como foi a Guerra dos Oitenta Anos. Na parte militar, o século XVI mostrou uma crescente profissionalização do exército, deixando de lado os exércitos criados para uma ocasião própria e adotando exércitos permanentes, melhores treinados e padronizados. Houve uma melhora na tecnologia, como na artilharia, que, paradoxalmente, tornou mais demorado conquistar uma cidade porque a resposta foi a criação de fortificações que resistam à artilharia, o que teve como consequência o aumento no número de tropas necessárias para tomar uma cidade e o consequente aumento no tamanho dos exércitos. Isso tudo, exércitos permanentes, melhora nas armas, aumento no tamanho do exército, melhor treinamento de tropas e fortificações mais resistentes resultaram em um aumento nos gastos militares.

Esses fatores estavam em vigor na Revolta Holandesa e isso teve um grande impacto financeiro nos países beligerantes. Os Países Baixos tinham um sistema de gerenciamento das contas públicas mais eficientes e tinham como maior fonte de receita o imposto sobre cervejas. Na Espanha, a principal fonte de renda era o imposto sobre ouro e prata extraído das colônias na América Latina, mas isso era insuficiente para cobrir o orçamento militar que ocupava metade dos gastos totais, para combater a revolta holandesa e para enfrentar outros conflitos ao longo do Império. Nem aumentar os impostos em Castela foi suficiente para cobrir o rombo e a dívida cresceu. Por conta desses problemas financeiros, às vezes faltava dinheiro para o pagamento das tropas, resultando em desmoralização, deserção e motins que enfraqueceram a Espanha.

Nos Países Baixos, esses custos não eram menores do que na Espanha, os gastos militares mais do que dobrando entre 1586 e 1600, indo de 2,9 milhões de florins para 8,2 em 1600, e esse valor chegaria a 18 milhões ao final da Revolta Holandesa, o gasto chegando a 12% do PIB ao longo da guerra. Os holandeses tiveram problemas de financiar seus gastos e tiveram que arranjar dinheiro em uma combinação de pirataria, ajuda externa e inflação, que não eram boas maneiras de financiar uma guerra. A mudança veio com um sistema de arrecadação mais eficiente, que permitiu aumentar o orçamento militar a uma taxa de 8,3% ao ano entre 1586 e 1600, de forma que em 1600 o orçamento já era maior do que o da Espanha e em 1630 era o dobro. Diferente da Espanha, os Países Baixos pagavam os soldados em dia e sofriam menos com indisciplina.

A principal fonte de receita dos Países Baixos era o imposto sobre vendas (excise taxes), que representava por volta de 60% da receita. Crédito só seria uma fonte relevante de receitas mais tarde na Revolta Holandesa. O imposto sobre imóveis era uma fonte relevante de receita, mas não de crescimento de arrecadação e não havia a flexibilidade necessária para aumentar esse imposto em emergências. E a maior parte dos impostos sobre vendas era sobre vendas de cerveja, esse porcentual sendo de 30% em 1572 e se mantendo por volta desse valor por todo o período da Revolta Holandesa. No final das contas, a receita com impostos só sobre cervejas giraria entre 16 e 24%, o que fazia dessa conta a maioria fonte de arrecadação de impostos nos Países Baixos. A cerveja arrecadava 6% dos impostos que a prata arrecadava na Espanha, mas esse porcentual foi a 34% durante a Trégua de Doze Anos e superaria ao final da Revolta Holandesa.

Mas porque a cerveja? São dois os principais motivos: a cerveja já era um importante componente do consumo diário e foi desenvolvido um eficiente sistema de tributação sobre a cerveja. Na primeira parte, a cerveja era mais barata, mais saudável, mais nutritiva e menos perecível do que a maioria das outras bebidas, inclusive do que a água, a poluição de águas sendo muito grande na Europa naquela época. O consumo per capita de cerveja era entre 200 e 400 litros, bem superior aos atuais 80 na Holanda e 100 na Bélgica. Essa elevada demanda criou uma gigantesca indústria cervejeira nos Países Baixos, assim como em outros países, como a Inglaterra.

Na parte da maior eficiência, houve a separação entre produção, transporte e venda. A cerveja não podia sair da cervejaria sem uma comprovação de que os impostos devidos foram pagos. Transportadores entregavam um recibo para os compradores, que precisavam deles para provar que os impostos foram pagos. Os transportadores eram os coletores de facto dos impostos e tinham que seguir uma série de regras, como não trabalhar em feriados e não poder vender cerveja eles mesmos. Ou seja, tínhamos uma combinação de elevada demanda com um sistema tributário que impedia a sonegação.

E porque a Espanha não fez o mesmo nos seus territórios dos Países Baixos? Havia problemas institucionais para que isso fosse feito. Desde 1540, eram as províncias, não as cidades, que cuidavam da taxação, o que não ocorria na parte espanhola. Mudar isso passaria por cima de privilégios locais e inclusive a busca por arrecadar impostos das províncias para financiar a manutenção das tropas foi o que disparou a Revolta Holandesa. Dessa forma, as forças espanholas nos Países Baixos dependiam da transferência de recursos da Espanha.

Espanha e Holanda guerrearam ao longo de oitenta anos e o território mudou de mão várias vezes até o Tratado de Münster e terminou na separação entre os Países Baixos norte (Holada) e sul (Bélgica). Antes da separação, o desenvolvimento era mais ou menos nivelado entre norte e sul, mas, após a separação, a Holanda desfrutou de maior crescimento e virou uma potência colonial, enquanto que a Bélgica ficou um pouco para trás, catalisado por uma fuga de cérebros do sul para o norte. Durante a guerra, Antuérpia, que era uma das cidades mais importantes dos Países Baixos, sofreu com o bloqueio de seus portos e perdeu espaço para Amsterdã. A composição religiosa entre os dois países mudou, com a Holanda se tornando mais protestante e a Bélgica mais católica, diferença que persiste até hoje.

Apesar de a divisão ter sido arbitrária em 1648, hoje há diferenças marcantes entre as duas regiões. Tanto que houve uma reunificação após as Guerras Napoleônicas em 1815, que durou apenas 15 anos sob o peso das grandes diferenças surgidas após o Tratado de Münster 180 anos antes.

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