domingo, 13 de julho de 2014

O Dinossauro



No último vídeo dessa série, vou voltar a falar sobre Brasil, agora de um assunto bem mais próximo do nosso dia a dia, que é a burocracia. Para isso, usarei como fonte principal o livro “O Dinossauro” de José Oswaldo de Meira Penna, mas também outros livros e artigos. Como gameplay, Max Payne 3, um jogo que não tem a ver diretamente com o assunto em questão, mas se passa no Brasil de hoje.

Como todo mundo sabe, o Brasil é o país da burocracia, da firma reconhecida, das dúzias de vias e das enormes filas em repartições públicas. Para traduzir isso em números no âmbito da economia, segundo o relatório Doing Business de 2014, o Brasil está na classificação 116 entre 189 países na facilidade de fazer negócios, uma modesta melhora na comparação com 2013, quando o país ocupava a posição 118. Para abrir uma empresa, são necessários 13 procedimentos que demoram 107,5 dias. A média da OCDE são 5 procedimentos e 11,1 dias. Para pagamento de impostos, são 9 pagamentos em média que demoram 2600 horas para que as empresas cumpram a legislação tributária, contra média de 175 horas na OCDE e 369 na região da América Latina e Caribe. O advogado Vinicius Leoncio se propôs o desafio de reunir toda a legislação tributária em um único livro, que resultou em um modesto livro de 7,5 toneladas, candidato a maior livro do mundo com o peso de dois hipopótamos.

Como explicar esse “culto ao papelório” em um país que não é um povo de intelectuais, cerebrino, amante de letras. O que explica tal formalismo e rigidez no país da flexibilidade, do jeitinho, da cordialidade que foi explicada em outro vídeo?

A resposta talvez esteja em dois conceitos abordados no vídeo anterior sobre o Brasil, o patrimonialismo e o homem cordial. A forma como o Brasil foi colonizado também ajuda a explicar essa situação. Desde o início, tudo dependia de uma ordem superior, através de decretos, alvarás e ordens vindas de Portugal. Toda a economia colonial dependia da metrópole, impedindo o desenvolvimento da iniciativa privada. A administração do Brasil Colônia foi altamente centralizada e mesmo os latifundiários não escapavam dos registros e controles da metrópole. Da nomeação a cargos públicos até a condução da economia, tudo era função do estado. Por conta disso, Raimundo Faoro, autor de Os Donos do Poder, via os brasileiros como inativos politicamente e incapazes de se organizar para se contraporem ao autoritarismo do governo central.

Essa estrutura patrimonial-burocrática foi sendo passada através das gerações e dos regimes políticos, resistindo à independência e depois à república. Os donos do poder a que Raimundo Faoro se referia, os componentes do estamento burocrático, sempre arranjaram maneiras de manter o seu poder e extrair benefícios dele. A profusão de leis, que sustenta esse arranjo, cria a situação bem peculiar do Brasil de que as leis pegam ou não pegam e tudo depende da interpretação dos funcionários responsáveis por sua validação, de acordo com os seus interesses. Nesse ponto, na hipertrofia legislativa, também surge a figura do criar dificuldades para vender facilidades. Há também a tendência do funcionário burocrático de empurrar os problemas para cima, para que sejam resolvidos pelo “você sabe com quem está falando?”.

O estado cresceu recebendo cada vez mais atribuições, as pessoas vendo o estado como a solução de seus problemas e que oferece amparo e proteção. Havia uma mentalidade generalizada de dependência do paternalismo governamental. Desde o início, o estado brasileiro era intervencionista, paternal e autoritário.

O livro “O Dinossauro” de José Oswaldo de Meira Penna publicado originalmente em 1988 traz vários e vários casos da absurda burocracia brasileira em diversos contextos. Alguns desses exemplos já não devem valer mais hoje, passados 26 anos, mas muitas coisas permanecem e outras situações absurdas devem ter sido criadas nessas mais de duas décadas desde a publicação do livro. No cerne dessa situação, a profusão de leis interferindo em tudo quanto é aspecto da vida das pessoas, respaldado por uma Constituição Federal considerada por muitos como paternalista (Penna consideraria mais maternalista do que paternalista, a propósito). Se apenas a legislação tributária pesa 7,5 toneladas, imagine o restante do corpo de leis?

A esse paternalismo estatal se explica algumas das regras criadas que geram um sem fim de procedimentos. Penna cita os diversos trâmites para uma estrangeira adotar uma criança no país em sua época. A preocupação, que pode ser considerada legítima, é com o tráfico de pessoas, mas a solução para esse caso, a criação de um processo com infinitos estágios, não é de modo algum eficiente. Para a grande maioria das situações absurdas é possível ver esse excesso de zelo se manifestando, como se fosse um pai super cuidadoso protegendo o filho incapaz. Essa na verdade é hoje uma tendência mundial, tanto que já se criou a expressão Estado-Babá para se referir às legislações cada vez mais paternalistas que estão surgindo em diversas partes do mundo, especialmente nos países desenvolvidos. A esse respeito, tem o “O Estado Babá” de David Harsanyi.

Penna liga essa situação ao estado patrimonial, conforme analisado por Sérgio Buarque de Holanda e outros autores, como Raimundo Faoro e seu Os Donos do Poder. Nessa situação, na ausência de uma distinção entre público e privado, poderes particulares e vantagens econômicas advindas do estado são apropriadas pelos particulares. O personalismo também ajuda a explicar a profusão de procedimentos burocráticos, pois eleva a importância de um determinado cargo público. Não poderia ser outro o resultado a não ser corrupção e favoritismos. A própria escolha para muitos cargos públicos, os cargos de confiança, populares no Brasil como em nenhum outro lugar, se dá por esses laços de amizade, compadrio ou de sangue. E disso deriva vários “ismos”, como o empreguismo, o coronelismo, o clientelismo e outras mazelas históricas brasileiras.

Outra manifestação do patrimonialismo está na forma como o Brasil se desenvolveu, principalmente após a Abolição. Na formação do patronato brasileiro, recorreu-se ao que hoje se chama de Capitalismo de Estado, com uma forte presença do estado na economia em conluio com empresários. Sob os mais diversos pretextos, o estado subsidia das mais diversas formas o setor privado, o que raramente é um arranjo eficiente do ponto de vista econômica e onde o estado, ao invés do mercado, escolhe vencedores e perdedores. Nesse arranjo, os lucros são privatizados e os prejuízos socializados. Essa não é uma característica única do Brasil, o Capitalismo de Estado prevalecendo em países como a China. Um conceito próximo, mas distinto, é o de Capitalismo de Compadrio, onde há essa mistura de público e privado que favorece alguns negócios em detrimento de outros, o que é incompatível com a genuína liberdade econômica. A esse respeito, tem o livro “Reinventing State Capitalism” de Aldo Musacchio e Sérgio Lazzarini que deve receber ainda esse ano uma versão em português. Não li esse livro ainda, mas conhecendo a obra dos autores, deve ser uma boa leitura. No final das contas, como no dito popular, empresa privada é aquela controlada pelo governo e a empresa pública é aquela controlada por ninguém.

Hélio Jaguaribe foi o autor da expressão “Estado Cartorial” para se referir a essa cultura da burocracia no Brasil. Outro Hélio, o Beltrão, que ocupou o curioso cargo de Ministro da Desburocratização entre 1979 e 1983, cargo que seria extinto em 1986, escreveria em artigo uma descrição perfeita da situação. “O Brasil nasceu sob o signo do cartório, da ata, do registro e da certidão. Disto decorre uma certa inclinação a só acreditar que uma coisa realmente acontece depois que se transforma em documento escrito. Essa tendência foi exacerbada na administração pública, onde prevalece o princípio oposto ao da presunção da veracidade. Perante a administração pública, suas leis e regulamentos, vigora a estranha presunção de que uma pessoa está sempre mentindo até prova em contrário. Essa presunção mórbida conduz ao absurdo de exigir-se do honesto a prova de que não é desonesto; de atropelar-se o contribuinte com exigências fúteis”.

Como um resumo, uma citação do livro de Penna: "Monstro antediluviano, foi a burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial com seus castelos, cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles habitam os grandes barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba dos altos funcionários, duques e marqueses com sua enorme clientela de gordas escriturárias e magricelas serventes famintos, que suplementam o salário-mínimo com gorjetas e comissões. Sobrevivem o foro, a enfiteuse e o laudêmio. Sólidos como o Pão de Açúcar, resistem ao sopro de renovação os direitos adquiridos, que são muitos: o direito ao cargo para o qual foi nomeado sem concurso, por ser filho de fulano ou primo de dona Carmen; o direito à promoção por ser amigo de beltrano; o direito à reclassificação, por ser amante de sicrano"

Essa situação perdura até hoje e não sei dizer se as coisas melhoraram. Em termos de paternalismo estatal, essa tendência só se acentuou nos últimos anos. No livro A cabeça do brasileiro de Alberto Carlos Almeida vemos esse fato em estatísticas. O capítulo 7, com o título bastante direto de “Brasileiro ama o Estado”, um grande número de pessoas acha que o governo deveria controlar empresas de um setor, inclusive de setores que já foram privatizados e outros que nunca foram completamente estatais, como bancos e montadoras de carro. Muitos também são a favor de que o governo determine o que as empresas devem fazer, como determinar salários e o número de banheiros em uma empresa, ou seja, são a favor da burocratização. 70% das pessoas acreditam que o governo deveria controlar os preços e 54% os salários. E não é porque acham que o governo seja mais eficiente, aliás, eles concordam que o governo é ineficiente e avaliam negativamente o governo. Não obstante, querem entregar tudo para o governo e restringir a liberdade da bem avaliada iniciativa privada. Só pode ser amor mesmo!

Seria altamente benéfico para o país a desburocratização que já foi alvo até de ministério no passado, mas não há nenhum indício de que isso vá ocorrer.

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